O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 11 de junho de 2010

Entrevista dada a Gisela Martins, sobre a Filosofia, para um trabalho no Ensino Secundário

1 - Para si, como professor, como pessoa, como filósofo, o que significa a filosofia e qual é a sua grande utilidade?

A filosofia, como o seu nome indica, é o “amor da sabedoria”, que entendo como conhecimento global dos vários aspectos da realidade e prática do melhor modo de viver, para o bem de todos os seres sencientes, humanos e não humanos. Isto inclui o respeito pela natureza e pelo equilíbrio ecológico. Creio ser importante recuperar a tradição da filosofia como “modo de vida”, como acontecia na Grécia antiga e hoje ainda acontece na Índia. A filosofia degenerou ao tornar-se um exercício meramente intelectual, escolar e livresco, que muitas vezes não transforma a vida de quem a supõe exercer.

2 - Pode afirmar-se a existência de uma filosofia portuguesa?

A filosofia, na sua essência e no seu exercício pelos filósofos, nunca será portuguesa, francesa, alemã ou chinesa, nunca será nacional, mas, na sua expressão histórico-cultural, é legítimo falar-se de tradições específicas e algo diferenciadas em cada nação, também devido ao modo como a língua condiciona até certo ponto o modo de pensar. É o que acontece em Portugal.

3 - Quais os filósofos portugueses que mais se notabilizaram na época moderna e contemporânea?

Sem esquecer o medieval Pedro Hispano e o renascentista Leão Hebreu, recordo Francisco Sanches, que pode ter influenciado Descartes, e depois Amorim Viana, Antero de Quental, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Raul Brandão, António Sérgio, Raul Proença, Fernando Pessoa, Raul Leal, José Marinho, Álvaro Ribeiro, Delfim Santos, Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, Vergílio Ferreira, Vasco de Magalhães-Vilhena, Abel Salazar, Vieira de Almeida, António Quadros, Orlando Vitorino, Afonso Botelho e Fernando Gil. Isto entre muitos outros e não falando dos que estão vivos. Alguns expressaram o seu pensamento poeticamente, o que é frequente em Portugal.

4 - A filosofia tem uma utilidade em diversos contextos ou é redutível a um conjunto de especulações teóricas?

A filosofia tem a grande utilidade de questionar e indagar o que é útil nos diversos contextos e até de questionar se algo tem de ser útil para ser valioso. As especulações teóricas nunca são redutíveis a si próprias, pois o que pensamos traduz-se sempre no modo como vivemos e agimos. Uma especulação teórica já é uma acção, que não nos deixa mentalmente iguais e que tende a expressar-se no mundo.

5 - O que significa para si a dimensão da filosofia?

Não sei bem o que quer dizer com “dimensão da filosofia”, mas diria ser a da experiência da visão, do espanto, da interrogação perante o haver algo e da busca de compreender tudo isso.

6 - Qual é o melhor argumento para se seguir e ter gosto por filosofia?

Duvido que se siga e tenha gosto pela filosofia devido a argumentos. A filosofia é uma vocação com que se nasce ou algo que se pode cultivar na medida em que sejamos capazes de não nos conformar com opiniões, tradições e ideias feitas, ousando a experiência de pensar por si mesmo em diálogo com os grandes pensadores e, mais importante, com a experiência profunda da vida.

7 - Em que medida a lógica formal é importante no âmbito da actividade filosófica?

É um bom instrumento para pensar conceptualmente e expressar rigorosamente o que pensamos, mas devemos precaver-nos de reduzir a isso a filosofia, que deve abrir os conceitos e a sua lógica ao impensado que surge em múltiplas formas da experiência humana: religiosa, estética, ética, política.

8 - Que importância tem o budismo na sua vida?

O chamado budismo é a via que sinto mais adequada ao que busco, realizar plenamente as minhas potencialidades cognitivas e afectivas, aceder ao estado de Buda, pois é a que mais me exige: ver as coisas tal qual, para além de véus conceptuais e emocionais, e amar incondicional e imparcialmente todos os seres vivos. É a via para além de todas as vias e de todos os “ismos”, incluindo o “budismo”. É a via sem via para se ser o que no fundo desde sempre se é.

9 - Poderão os filósofos contribuir para a resolução dos problemas que actualmente a sociedade portuguesa atravessa?

Todos os problemas, agora e sempre, onde quer que surjam, apenas se devem à falta de sabedoria vivida e praticada, que não seja um mero conhecimento intelectual. Um filósofo que realmente o é, na medida em que viva filosoficamente, como foi o caso de um Agostinho da Silva, é o melhor conselheiro de uma sociedade, que deve tomá-lo como exemplo. O problema é que os homens dificilmente estão disponíveis para reconhecer e escutar os filósofos e ainda menos os sábios, pois estes nada prometem e antes tudo exigem, e o mais difícil, de cada um de nós. Os homens preferem dar ouvidos a todo o tipo de promessas dos comerciantes, dos publicitários e desses outros comerciantes e publicitários que são hoje os políticos, mesmo sabendo, lá bem no fundo, que são sempre falsas e que só visam enganá-los. Ou então preferem anestesiar-se com tóxicos, incluindo esses tóxicos lentos e invisíveis que são o consumismo e o futebol, entre outros. Esse é um dos grandes problemas da sociedade portuguesa actual e do mundo em geral, que caminha anestesiado para a catástrofe económica e ecológica. A sua solução implica uma profunda mudança, que será dolorosa pois implica a renúncia involuntária aos nossos hábitos mais enraizados.

10 - Caso possa, gostaria de deixar alguma mensagem para os jovens?

Tomem consciência de que não serão jovens para sempre e, antes que vocês próprios, a sociedade, a doença, a velhice e a morte vos corrompam, não vão atrás das propagandas oficiais familiares, escolares, sociais e políticas, despertem das ilusões que regem o mundo, antecipem em vocês a mudança que desejam, sejam felizes e tornem-se contagiantes! Nunca pensem a uma escala estreita: não queiram só o vosso bem, nem o dos vossos parentes, amigos, concidadãos ou membros da mesma espécie. Esforcem-se por um mundo melhor para todos os seres! É isso que abre a mente e o coração e torna a vida digna de ser vivida.

4 comentários:

WOLKENGEDANKEN disse...

Aspecto interessante que a língua condiciona até certo ponto o modo de pensar.Poderias indicar-me algun trabalho serio - mas recente do que Wittgenstein - sobre o tema ?

platero disse...

não me importava de ser aluno de Gisela Martins - para passarmos umas aulitas a discutir a entrevista

abraço

Paulo Borges disse...

Ocorrem-me os trabalhos dos linguistas Sapir e Whorf, seu discípulo, bem como, mais recentemente, do filósofo checo que viveu no Brasil e escreveu em português: Vilém Flusser. Sobretudo "Língua e Realidade".

WOLKENGEDANKEN disse...

Obrigadissima !