O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 18 de outubro de 2009

"O medo é uma trança" - Ana Hatherly


Imagem Google: "A dream on our way to death", Foureyes


A senda que eu sigo
É a meta que atinjo.
Partindo, regresso
E regresso avançando.
Temendo é que eu venço.


Chorando, me alegro
E sofrendo, embeleço
Entendendo a ordem
Oculta e evidente:
Ou amo e morro
Ou vivo e não amo.


Ana Hatherly, "O Regresso II",
in "Poesia 1958-1978", Moraes Editores, Lisboa 1980, pág. 38)

11 comentários:

Anónimo disse...

Damien,

suponho ser este o caminho... caminhar como meta, caminhar regressando, regressar caminhando e o desvínculo da alegria e da tristeza, do prazer e da dor, do ganho e da perda, da glória e da desgraça, do elogio e da crítica, do ser e do não ser... amar e morrer.

Amar e sentir o fogo da paixão queimar peles, pensamentos e emoções que julgamos crer; amar e queimar palavras que cremos ter; amar e morrer na fogueira sacrificial, ateada não a deuses moribundos e defuntos, sim pelo bem de todos os seres sencientes.

O que resta? ...

Que sábios os seus posts são:)

João de Castro Nunes disse...

Sabedoria... saloia. Homessa! JCN

Luiz Pires dos Reys disse...

O texto não é meu.
E nem sempre subscrevo (ou o devo) o que nos meus posts vai dito. Liberdade e distanciamento.

Creio que só uma certa outra forma de mudez, como um magistral grito que nos decepa a ranhura de todo o balançar em nós, ou o dedo apontante para um algures-nenhures que termine com o labirinto-dédalo em nós, ao tocar-nos, tamanho, na ferida, que nos faça indeferidos sem ferida - só isso, talvez, ou nem isso, possa livrar-nos até de cuidados com seres sencientes ou inscientes, ou sequer cientes ou entes.

O que resta, Kunzang, quem sabe, é isso de que somos como "resto" e "rastilho"...
O que "isso" seja, ninguém sabe, ou haja saber.

Talvez seja isso afim daquele "Há" de que fala Llansol em seus lugar e cena de fulgores, esse "lugar" onde, como ela diz, "não podemos desejar o novo e querê-lo sem surpresa": "sem o seu fulgor, não saímos da simetria. E nesta nada vemos."

Anónimo disse...

mas... "indeferidos sem ferida - só isso, talvez, ou nem isso, possa livrar-nos até de cuidados com seres sencientes ou inscientes, ou sequer cientes ou entes." - é sabedoria sem compaixão... indiferente ao sofrimento dos seres.

O Damien não é compassivo? Ou a sua compaixão revela-se pela frieza com que, por exemplo, responde aos comentários do Doutor JCN? Será que é preciso ser assim para ajudar o próximo? Ou para si a compaixão é uma pedra no caminho?

Luiz Pires dos Reys disse...

A passagem que cita, caro Kunzang, é um esforço (por certo impotente) de pôr a linguagem a dizer o que não pode.

A "compaixão" pode ser um escolho quando seja meio caminho (ou mais) para a lamechice "espiritual". Que é o exacto contrário do que quer ser.

O "caminho" é de frieza e dureza de pedras de escarpa e de braseiro das areias desertas. São a mesma coisa. São coisa nenhuma.

O delicodoce da vida não aquece nem arrefece, para nada, e tão-pouco nos traz alguma coisa de tudo.

Ainda que eu não seja "assim" como (a)pareço, quero ir "pelo" que sou no que pareço, que não sou.

É como escolher estar sempre onde se não esteja (ou se não seja).

Não quero ter onde "deitar a cabeça"; quero, sim, o que me acorde de ser minúsculo.
Ser minúsculo é crer-se a si alguma coisa. E ser alguma coisa é quase como ser nada. É não ser tudo o que se não é.

Quanto ao Dr. JCN, ambos sabemos o que é o "amor-ódio". Pode ser estimulantíssimo ou destrutivo.

Cabe-nos, a ambos, a escolha. Ou a não-escolha, que é ainda um escolher.

Abraço a todos.

Anónimo disse...

Belísimo e arrepiante texto, Damien!

Como um grito na voz me oiço dizer: "Chorando, me alegro/ E sofrendo, embeleço"

Como um pranto de silencio e um nó no avesso do que em nós é não vida e não morte, nem não vida nem não morte.O poema o diz, "o medo é uma trança". Tenho medo até das palavras que me cortam de alto a baixo. Ferida em mim: "ou amo e morro/ Ou vivo e não amo".

A imagem é excepcional: a mão magra e branca do náufrago de si...
Terrível e belo.

Anónimo disse...

As Alcíones cuidarão de atravessar as ondas e quem sabe entrar no sonho e nos de Morpheu se entregar.
Ao sono e à morte.

Luiz Pires dos Reys disse...

Grato, com Ana Hatherly (ouso adivinhá-lo), por sua leitura de sempre tão segredado espanto, quase nua de adjectivos, qual eu a não sei.

Visita, não - que nunca o é. Sempre já cá está, no que "há".

Como sempre também, logra o que não "quer" ninguém conseguir aqui: emudecer-me.

Gratíssimo.
A si, e a Ana Hatherly.

Anónimo disse...

«Como sempre também, logra o que não "quer" ninguém conseguir aqui: emudecer-me.»

Damien,

mas se ninguém o emudece, como é que desvela a sua natureza primordial?

Luiz Pires dos Reys disse...

A fala não é a boca, caro Kunzang.

O "não querer ninguém emudecer-me" é melhor compreendido se permutarmos querer por saber, como eu creio que, alfim, essas energias verbais são: unas, uma.

A "natureza primordial" não creio precise de ser "desvelada". Ela é, basicamente, a "mesma coisa" que a "imagem", na tradição judaico-cristã. E é intacta sempre, desde sempre e para sempre.

O que carece de "haver" é a "semelhança". O que nos torna folhas, flores e frutos singulares, mas em tudo semelhantes, do mesmo caule e raiz.

O que seja a terra, a água, o sol e a luz não sabemos.

Ou... melhor: sabe cada um por si.

João de Castro Nunes disse...

É claro que "a fala não é a boca". Há quem fale... sem ser pela boca, como é o caso do... cuco, que fala pelo lado oposto à boca. JCN