O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 30 de agosto de 2009

da pesca, sem linha

Fui pescar a malta à pesca e...
não sei por onde comece, se pelo tempo e clima em si, ventoso, como de costume por estas paragens, se por qualquer outra coisa que vier à rede, já que agora aqui me sentei... sei lá.
Toda a malta alinhada no pontão de pedra, que ladeia a foz, até muito próximo da sarronca, onde se encontra um pequeno farolito que sinaliza a entrada do estuário até ao porto de abrigo, onde guardam os pescadores cofres, redes e outras artes de pesca.
As motas de água rasgam episodicamente o inexistente silêncio com o brunhido engasgalhado dos jactos propulsores, ofuscando por momentos o ritmado balancear das águas, que entram com a subida da maré e visivelmente perturbam a necessária concentração que se anuncia solitária e íntima do mais silente em cada um. Pescadores, visionários, espectadores, passageiros, todos se voltam para a fonte ruidosa e, de diferentes maneiras, cada qual acaba por reagir à intempérie:
- Ó seu animal! Vai pastar para outro lado! – e eu, desato a rir.
- Não vê que eles vêm até aqui só porque têm plateia… olhó casalinho! – canta outro prestíssimo alegrete.
A serenidade é uma interrupção, oscilando aqui e ali por momentos ora reflectivos e contempladores, ora céleres e esporádicos… e a aparente tranquilidade do local queda-se, de súbito, num frenesim típico similar à reacção de uma picada do peixe. Uns baixam as canas à pressa tentando por vezes em vão evitar que a linha seja arrastada pelas embarcações e outros, esquecidos de orientar o material, já que pescam à bóia, continuam a entreter-se a vaiar as cada vez mais estranhas formas de lazer que vão surgindo, e que a época proporciona.
A fotografia tirada da plateia contempla todas as imagens sucessivas oriundas de multi-disparos sequenciais de ímpares instantes, que, sequenciados, se assemelham particularmente à ideia a que a minha percepção constata como sendo uma possível realidade, ou fragmento episódico - talvez o mais correcto - um estádio alegórico que o acto contemplativo designa e reafirma (absurdo, grande parêntesis). E… acabo por tirar mais uns contactos neste dia, como mais tarde irei ver.
Pescam com camarão, vivo ou cozido e, até ver, ninguém com teagem.
A foz do rio separa-se do oceano por um istmo de areias móveis na zona próxima ao refluxo das marés e, composta por dunas secundárias, ao longo da imensidão deste braço, cobertas pela vegetação típica dos ambientes mediterrânicos semidesérticos que evoluem a pinheirais, marcam-se na transição para as áreas de bosque ou outras áreas cobertas. Estuário adentro é este o panorama. Para oeste, a mesma extensão de areia compõe uma larga praia desabrigada, todos os dias como hoje, fustigada por ventos dominantes e banhada pela corrente marítima concordante.
Tiro da sacola que tresanda a peixe a máquina das fotografias e começo por rever… as últimas da… Batalha da Ponte Ferreira, levada à cena ontem à noite... em Campo..., e o sol, a pique! - portanto, escusado será dizer que foi uma rápida revisão, o suficiente para saber que podia tirar, exactamente mais noventa e três contactos para perfazer quinhentos megas em cartão. Mais que suficiente!
Umas imagens de lançamentos, um ou dois filmes de curta duração, uma sequência de contactos panorâmicos da vila à esquerda, até ao mar, e à minha mão direita, pouco ou mais nada.
Aproveito para cinzelar no caderno que já lá vai uma hora, desde que o vento me despenteia. Viagens por decisões pelo meio, obrigam a que nos desviemos de um terno quente nada, por raros e breves instantes, segundos ou breves minutos, em que o que somos por esse tempo passa sem que se dê realmente por isso… não sei.
Entretanto um dos pescadores resolve-se e decide rapidamente levantar chumbo. De fora que me digo, serenamente imbuído no estar-se em observação, depressa me apercebo, por palpite, que não será assim tão fácil resumir o acto… há um problema; estão todos coladinhos uns aos outros, e qualquer repente ou descuido pode ser mortal para a concentração de quem está ao lado com a sua caninha na mão. Um descuido, e adeus calma, se se engalharem os fios de quatro ou cinco canas a pescar para a mesma zona de corrente, que agora, facilmente arrasta consigo cinquenta gramitas de chumbo. A corrente encarrega-se de deslocar tudo, quer seja chumbo, fios, canas e olhares, bem como por vezes arsenais, em direcção do mar, enleando e misturando por vezes toda esta parafernália de matérias, é o que ocorre.
A ver, levantou-se muito lentamente… para não tropeçar em ninguém e muito menos tropeçar em si mesmo; nem nas pedras soltas, alteadas em pontão. Até agora, como se vê, nada rápido de ser vitoriosamente executado até a um próximo silêncio descrito. Identificou claramente a sua posição face aos demais libertando-se de si ao redor de tudo o que se não se assemelhava liberto. Posição da linha, posição da cana, correcta postura corporal e uma grande inspiração… profunda, sonora pelo olhar (sentiu-se, senti) – a idade deste amigo era evidente e nada nessa idade se faz à pressa, nem tão-pouco deverá nesta ser feito, mas adiante… – constituíram o momento poético passível de o ser ou por outrem descrito como início da recolha das artes.
Ergueu-se, tombando o tronco ligeiramente para trás, num movimento que faz com que o peso corporal, associado à resistência do fio na cana, eleve do fundo a chumbada e anzol de uma só vez, prevenindo a sua perca, bem como por vezes, largos metros de fio, acaso tenha de ser intencionalmente quebrado ou cortado.
Com o fio da cana já passado por debaixo dos restantes emoldurados, sem que alguém pedisse, descruzaram os aparatos, e ele, continuou a bobinar contínua a linha que agora se aproximava de si, trazendo muito provavelmente nada. Recolheu-a na totalidade e voltou a iscar camarão, na secreta esperança de ser brindado por uma captura.
Sorri, sorrimos aliás… enquanto puxava, dava ideia de balbuciar frases gastas de pescado, historietas de bailas e robalos, historietas essas que levaram a que se contagiassem todos os ânimos já resplandecentes. Iscou de seguida, e o que disse foi tão familiar e certeiro que o fotógrafo das suas fotografias, os pescadores de vara larga e os transeuntes passageiros se desengataram todos finalmente desse anzol a que chamamos expectativa da diversão afectuosa na amizade… Risota total!
Pergunto por sargos, responde-me com douradas; pergunto se ao corrico leva a bom porto e não tenho hipótese - aí a amostra da minha alegre ignorância - ou talvez seja uma tentativa de ser alimentado o esparso diálogo até então ali recriado, e por mais não me contive, risada em frente…:
- Ó amigo!? Com esta rapaziada toda à volta, a esta hora? Nãa… ao fim da tarde, ali à sarronca… aí sim, pelo menos não há perigo de ficar engalhado nas artes individuais! Está a ver, não está?... É mais calmo, é mais solitário, e sobretudo não ‘aparece’ espectadores… Está não está?
- Estou estou, então não estou! … - e sorri, porque tal já tinha para mais tarde te contar.

Ao Mário.

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