O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 17 de abril de 2009

Há anjos assim...





O ANJO MARINHO

O pensamento às vezes torna-se
material e tórrido. E às vezes
nas imagens da ausência nada
é frio. Ou outras associações
nascem. Estou sem Ti percorrida
por esse fogo. As faces cálidas
que ainda ecoam. As faúlhas
azuis e a baba do verdadeiro
fogo. Expectante e em cinza. Não
me reconheces já. Eu transfiro
o meu poder para a cinza. É
encantatória. Suave e com um
cinzento de rolas. Certos dias
a poeira brilha. Tu ainda
podes aturdir-me. Soprar
com lentidão para dentro do mar.
Até que eu me deixe afastar.


Fiama Hasse Pais Brandão
Obra Breve

***

Neptuno chamou a si todos os anjos do Mar e disse-lhes: "Há uma única coisa a fazer hoje e sempre." A voz grave e sábia, ao mesmo tempo doce de Mar salgado, os olhos brilhavam e os cavalos marinhos esperavam pela palavra certa, no momento certo em que desatassem a correr pelas ondas fora, levados pelas correntes mais quentes. Correntes sanguíneas de sangue azul, de um sangue real. Não era real de realeza, era real de realidade, porque era real. O Sangue do Mar corria quente nessa tarde. Porque o Rei Sol também tinha sido convidado e trouxe de presente, para todos os seres marinhos, os seus braços abertos infinitos de carinho e de Amor pelo Grande Azul.
"Que os anjos de todos os mares, voem bem fundo."A voar, submersos todos cumpriram desde o primeiro dia do Universo. Hoje, sempre que os sentimos a passar e a rebentar na espuma, achamos graça. Eles são graciosos no seu jeito de ser. São acolhedores na sua presença infinita e celestial. São celestes no Mar. Descem em cada gota de chuva, ainda sem asas preparadas para submergir. Não sentem o vento do mesmo modo, os seus olhos não se assustam com o tamanho das vagas que se formam em alto Mar, nem com os barcos, nem com os barqueiros que lhes aparecem pela frente. Os pescadores sabem sempre onde encontrá-los. Sabem como chamar por eles em tempestades da vida. E, quando ganham as asas de Mar, aprendem a voar no Mar, como peixes, como algas, como o próprio Mar sabe ser-se. São Mar com ele, são líquidos e têm aquela qualidade de se poderem deslocar com o sabor a sal que vai e vem, que embala, que rebenta e sempre regressa.

Há anjos assim líquidefeitos, flutuam e ondulam no Mar da vida. Nem o fogo que os ilumina, nem o vento que lhes sopra nas asas e lhes solta os cabelos, nem a areia lisa, quente, fina, nenhuma destas companhias se faz rogada, se fica por si, se queda numa esquina de uma rocha à espera de um novo dia, sem a bênção maior e mais linda de se ver em frente ao Mar. Os anjos marinhos soltam palavras de uma língua desconhecida para todo o sempre dos lábios branco-cal, da sua boca sai uma brisa azulada, que muda de tonalidade consoante as palavras e os sons vão mudando.
A brisa solta-se do azul-claro-água ao azul-escuro-noite. Mas há azuis de todas as cores nessa bênção. As Sereias* vergam-se aos seus pés, saúdam-nos de uma forma inigualável e inimaginável. E eu que sou Sereia* como qualquer outra, só canto nessa altura. Só canto, para os anjos marinhos. No meu feitiço, a fada do Mar disse-me que seria assim para todo o sempre. Só cantaria para os anjos do Mar ouvirem. E mesmo que eu tente cantar para outros seres marinhos, da minha boca não sai um único som que se ouça aquém ou além da praia da minha vida*

2 comentários:

Anónimo disse...

Querida amiga Sereia, há já algum tempo que te leio e mantenho o que já disse - estás cada vez mais apurada no sentir...azul...e em comunicá-lo!
Adorei este texto e julguei-me tb sereia e anjo de mar, já que tanto amo o mar...E sim, nas tempestades a vida o mar purifica-nos, talvez pk o seu sal tb tem mto as nossas lágrimas; não sei, mas agora encantaste-me com este teu "canto"!Mts parabéns, um bocadinho "invejosos" pk está tão bem escrito e profundo, q gostaria de ter sido eu a reigi-lo.
(Qto ao poema inicial, de tanto cinza só me lembro do nosso amigo suschi...ehhe)
Bjo grnd de luz e paz
Em azul...sempre!!!

Fragmentus

Paulo Borges disse...

Creio que os anjos têm um avesso chamado demónio... E que só terão paz quando de um e outro se libertarem. Belo texto, à parte isso.