O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quarta-feira, 11 de março de 2009

Deus e Adeus: "o mesmo grito da Saudade"

"Que distância entre Deus e Adeus? Representam o mesmo grito da Saudade, que é a dor da solidão, a ânsia de eterna convivência, tão entranhada no efémero do nosso ser! A palavra Deus, como a palavra Adeus, não exprime qualquer ideia, mas um desejo ou força, irrompida, através de nós, do íntimo das coisas"

- Teixeira de Pascoaes, Napoleão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1940, p.322.

11 comentários:

Luiz Pires dos Reys disse...

Que distância entre homem e humano, entre solitário e in-sólito, entre crer e acreditar?

"Não há longe nem distância" disse o poeta de cujo nome uma certa enxaqueca da memória me não deixa lembrar.

Como sempre, os poetas antecipam, na lâmina do tempo - isso em que ancoramos os pés da emoção e o ventre do pensar -, antecipam o pretérito da visão na pálpebra da escrita em que se lavram como húmus da boca à procura de si mesma em cada homem.

Talvez de alguma forma por isso, "entre" Deus e Adeus o que "há" é o lugar da paradoxia dum (in)imaginável prefixo de "(ad)negação" que afirmasse ainda quando, afirmando que negava, do mesmo curso negasse o que negasse.

Talvez também, por isso, tenha mais funda razão Pascoaes ao dizer que tais palavras (Deus e Adeus) não exprimem ideia alguma, "mas um desejo ou força, irrompida (...) do íntimo das coisas".

Em que lugar tal desejo ou força irrompe "do íntimo das coisas"?
Pois ... no mais extremado não-lugar, precisamente: "através de nós"... Nós, que precisamente somos sempre o longe sem distância...

Abraço, Paulo!
Grato por este "par de dança" sagrada que nos trouxe: no "mesmo grito da Saudade"... a saudade que em nós cala...

Anónimo disse...

Deus, A-deus!

Anónimo disse...

Que será "um desejo ou força" irrompido "do íntimo das coisas" senão o que se designa "Deus"?

Luiz Pires dos Reys disse...

Será, Interrogativo?
Porque assim é?
Não poderá ser (também ou antes) o que em nós fulgura de mais humanamente inumano, ou inumanamente humano?

É dum (in)certo "locus", é dum indeterminável "há" que aqui se trata, creio, e não dum "quê" ou um "que".
Ou seja: o "há" é aqui o lugar duma sempre ausência, em quanto se nos a-presenta.

Aqui, é-o "entre" Deus e Adeus, "entre" dEUs e Ad-deus, entre O Ab-ussos e o abísmico, entre o que há em nós de nós e o que em nós é ausência de nós.

O "entre", creio, fala aqui do (e porventura também d'O) insituável em tal in-curso e trans-curso: seja em desejo que vem do longínquo (no paradoxal "desidere", que é o "estar sentado", o "estar na sédia de si"), ou em força (que irrompe, do mais próximo, como virtus, como dynamis, que é um estar "fora de si")...

No que perpassa em tudo isto patenteia-se, parece-me, o "quão" inquantificável (será um outro tipo de "quanta"?) o que mais abismicamente somos roça e porventura beija o "Isso", o "Aquilo", o Tat dos hindus e dos budistas, que é "Esse" ab-yssimus, o radicalmente Sem-fundo, que também "somos".

Na verdade, ao que parece, o que há nisto tudo de certo é isso mesmo: um inacessível e insituável "há"...

Laura disse...

Mas adeus tem uma etimologia: vai com Deus, encomendo-te a Deus, a Deus. No entanto, podia ainda significar "sem Deus"... mas nada suporta esta ideia. Também os franceses dizem "adieu":

Dieu
Du lat. deus, dieu, qui vient de la racine indoeuropéenne °dei-, briller. Le français a gardé les expressions: Dieu merci (à la merci de Dieu), dire adieu (formule de recommandation à Dieu), discours ou visite d'adieu, à dieu vat. (ancien souhait de bonne navigation).

Agora "Deus", é sem dúvida esse desejo, essa força, esse impulso... em direcção a quê? Ao brilho, à luz? À harmonia entre o bem e o mal? Entre luz e escuridão? O regresso a casa?

Sobre esta necessidade de harmonização, deixo aqui um texto de Agostinho da Silva, filósofo que descobri aqui na Serpente e me está a fascinar:

“Não ousou o homem pôr a maldade entre os atributos de Deus e pecou primeiramente porque foi estreito; e de novo pecou porque foi tímido. Consolava-o a ideia de uma protecção sempre possível e a mente, que não se levantava ao total, só pôde conceber a explicação infantil e ilógica dos dois demiurgos. Fugimos da aspereza e erguemos um palácio de fadas, esplêndido e seguro, mas enervante e mole; tememos a vida e a vida se vingou. Restituamos a Deus toda a sua grandeza; reconheçamos o seu poder na violência e no terror; tenhamos por divino o abaixamento destes tempos; emana Caim do espírito supremo – como Abel; não tiremos a Deus o que temos como ideal superior: a vontade do progresso; não o despojemos, por interesse egoísta, do prazer de marchar, não lhe dêmos em troca da variedade que roubamos a monotonia a que aspira a alma baixa”.

(Agostinho da Silva, “Ir à Índia Sem Abandonar Portugal; Considerações; Outros Textos”, 2, 24, edição da Assírio & Alvim, Lisboa, 1994)

Então o impulso para Deus, essa "força irrompida, através de nós, do íntimo das coisas", implica amar de forma igual Caim e Abel, a escuridão e a luz, anti-matéria e matéria, caos e organização, conhecer todas as coisas e amar todas as coisas. O impulso para Deus é o amor.

Anónimo disse...

A Saudade é tensão, força bipolar, anseio, sim, de ausência, e terror de não senti-la enquanto presença ausente. Mais do que ser na proximidade ou na distância de sentidos, Adeus e Deus encontram-se, no “entre” que já aqui foi referido. Ànsia de, na solidão, busca a presença, para paradoxalmente no Adeus aDeus se ver e criar.

Sermos o eterno que nos sentimos no Outro, no efémero de nós; sermos o que em nós se ausenta e é, nessa ausência presente, uma presença ausente. Como se a “morte”, a distância a separação fossem o A.deus que a Deus mostra a face e a quem Deus se revela nisso. É como se ausência e presença, Deus e aDeus fosse nascimento de uma ausência presente (sobreausência ou sobrepresença) sempre em trânsito entre mundos. A realidade, para o espírito saudoso, não é a mesma realidade que todos vemos e que resulta da percepção da nossa alma, mente, sentidos e o seu derramamento sobre as coisas. Um desejo que vem das coisas e do ser que nos é e que está no que há e não há. A Saudade é mais longe, é a possibilidade de criarmos a eternidade. Os heróis e os homens são saudosos, Deus não.

Se a Saudade é via, será a da Libertação de Deus, a libertação, se quisermos, da realidade?

A Saudade resulta de uma cisão, uma separação que nos dá a vida “em ânsia de eterna convivência” e no-la tira, devolvendo-a a.Deus, que divinamente, nos devolve a realidade em Saudade. Encontrando o que se ausenta, paradoxalmente, na medida da sua presença, em abismo...

Em a.Deus, há Deus?...

Quanto à bipolaridade desse sentir saudoso, ele anula o que cria no mesmo gesto de ansiar, criando o que se morre na ausência, para que nasça.

Nascer e morrer num mesmo, único, e simultâneo gesto, é talvez a ânsia maior da Saudade...

Claro que o Amor é nisto o todo e o tudo. Gostamos de pensar que o Amor é que dá à vida que se nos morte, não o que é nosso nem o que somos (que os não há) mas para nós o sonhamos, em ânsia de ser, nos atravessará em Saudade. Futuramo-nos nisso, na reminiscência...

O que para alguns é doença, é para outros saúde. Saudade e Realidade; Realidade e realidade;

Um abraço, Paulo, por esta "viagem" por mim mesma, em Saudade.

Anónimo disse...

"Deus é o único ateu perfeito" - "Santo Agostinho"

Anónimo disse...

O que vocês dizem nem Deus o entende... Ou, sobretudo, Deus não o entende.

Luiz Pires dos Reys disse...

Caro Anónimo,
É muito provavelmente por isso que "Deus" é mais abissalmente "conhecido" apofaticamente... porque é "in-capaz" de deixar-Se conhecer em nós e de en-tender-nos... tanto quanto isso é válido também para nós.
Por isso também, a via mais radical é paradoxal, é a Parede Sem Porta, a única que transcende a própria transcendência de transcendermo-nos.

...Linguagem que apenas entende quem logre entender que nada é compreensível de quanto compreendemos. Por isso mesmo o entendemos.

Anónimo disse...

Deus é A-Deus porque em Deus não há Deus.

Isto entendo.

luizaDunas disse...

O Adeus é a adivinhação de se ser Deus em Deus. A Saudade será o Tempo, o tempo entre a partida e a chegada onde nada se separa ou reencontra. É de gritar, pois.