O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Sophia de Mello Breyner: Pirata

Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Sophia de Mello Breyner

4 comentários:

Liliana Gonçalves disse...

"E nunca acordo deste sonho e nunca durmo."

a poetisa Sophia de Mello Breyner
é desde início de escuta da poesia, uma companhia de longos tempos.

quando encontro os seus poemas, os seus versos de silêncio, a maresia das suas palavras, a crítica ali no seu clamor...Fico sentada no caule de uma planta, que muitas vezes me chama de novo às origens.

grata pela partilha.

Luiz Pires dos Reys disse...

A Liliana já disse tanto, tanto... mas, ainda assim, me permita ela, alma-irmã de poeta, e Madalena também, a ousadia de dizer umas das minhas prolixas bagatelas.

Sophia é sempre tão grande, tão definitivamente justa na visão que nos torna presenta que, na verdade, nos fala sempre numa como que serena e sábia exaltação feita de sentido do sublime e da inaugural doçura que aflora à pálpebra das coisas quando nos concedemos a silenciar todo o ruído de que constituímos o nosso viver.

A ambas muito agradeço esta comunhão na riqueza do diverso em nós, bem como a inevitável vinda desta mãe-poeta em visita, ela de quem, como de raras, assim podemos falar sem mais que esperável contradição.

E calo-me, ... para que ela, como sempre, nos silencie dos mais verazes e belos frutos.

Anónimo disse...

Eu diria que já esteve aqui Sophia, que seus olhos vi. De lá se via o mar, se via a flor de outro jardim sonhar e despertar...


Desse lugar se via surgir das negras cordas, a fera que o mar fora, a se acalmar.
O uivo dos ventos é brisa, na cálida pálpebra dum repouso manso.
Onde a pátria é um corpo de esperança, uma esfera de leve amanhecer na fronte das roseiras.
A minha pátria é onde o sol se põe, para nascer num lugar recôndito do sonho onde me abrigo.
Como canavial o meu corpo é de vento e segue nesse mar...

Mais uma vez, o poema me convoca a uma nova viagem, velejo em redor do mar, elemento de que é feito o sal do meu sentir.

Agradeço a Madalena que aqui o trouxe na voz serena e imensa do mar de Sophia...

Grata, gratíssima.

Laura disse...

Sophia é para mim uma memória que desejo transportar comigo para todo o sempre. Sophia e o seu mar e a sua casa branca branca e a sua luta feita poesia por tudo o que é justo e claro no mundo. E este pirata que uiva no vento com os mastros e que amarra tigres e ursos aos remos, faz-me lembrar alguém... Dois alguéns.