O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 25 de janeiro de 2009

Gegenlicht / Contraluz

Crepúsculo.
Como desliza o campo
ao nosso encontro, a corrente larga,
planícies! Fria, fora de tempo,
a lua. Um golpe de asa agora.

Nas margens dos rios,
longe,
quando o amplo
céu os abraçava,
ouvimos cantar
na sombra das florestas. Um antepassado
procurava valas engolidas por ervas.

Coração de pássaro, leve, pedra
emplumada cavalgando o vento.
Caindo nas
névoas. As ervas e a terra
recolhem-te, um rasto
de morte no visco de um caracol.

Mas
a mim quem me suporta,
homem de olhos fechados,
boca perversa, com mãos
que nada seguram, que sequioso
segue o rio,
lançando na chuva
a respiração de outro tempo,
o que já não volta, o outro,
não nomeado, como nuvens,
um pássaro de asas abertas,
irado, contra o céu,
selvagem, contraluz.

- Johannes Bobrowski, "Contraluz", Tempo da Sarmácia, in Como um Respirar (antologia poética), selecção, tradução, introdução e notas de João Barrento, Lisboa, Cotovia, 1990, pp.11 e 13.

2 comentários:

Anónimo disse...

Paulo,

Do comentário a este texto nasceu-me um outro que acima deixo.
Espero que tudo corra bem no lançamento do livro que hei-de ler.

Luiz Pires dos Reys disse...

Contraluz é um paradoxo de si: está voltado nele o ver para a luz, mas a mesma cegueira o não deixa ver que seja a sombra que vê.
Quem sabe, não é este o nosso estado habitual de ver e per-ceber, per-saber pelo que em nós faz sombra, em contraluz de nós.

Obrigado, Paulo, por este extraordinário poema, um verdadeiro "tratado" da mais agudizante "ciência" óptica, do não-ver...
Abraço!