O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Casa Cheia

Começou por ser uma casa vazia. Portas e janelas sempre abertas. Chão e paredes de pedra. Tectos transparentes. Também a sua localização era importante. Não era uma casa fixa, circulava, ora rodeada de floresta, ora de nuvens, ora de estrelas. Era uma boa casa. Dormia no chão e nem sentia o frio da pedra. Era feliz. Amigos vinham e iam, como aves de arribação. Abraços, risos, conversas, algumas lágrimas. Era a melhor casa do mundo.

Até que um dia vieram aqueles que não partiram mais.

Começaram por pôr trancas nas portas e janelas e começaram a trazer coisas para dentro de casa. Depois, fixaram-na ao chão, com cabos de aço, para facilitarem a tarefa de acumulação e enchimento. Cobriram os tectos com placa sólida. Trouxeram raiva, amargura, frustração. E coisas, muitas coisas. Coisas sólidas, que ocupam tudo, de todos os tamanhos, côres e texturas, coisas grandes e coisas pequenas, bicudas e redondas, com e sem arestas, de formatos simples ou complexos. A paisagem desapareceu e a casa começou a encher-se do pó dos que não partiam e do envelhecer das coisas. Já nem havia espaço para as aves de arribação, que com tristeza, ainda pousavam nos beirais, de vez em quando, até que um dia deixaram de vir. A casa ficou cheia, muito cheia, e escura e triste. E a alma que vivia lá dentro, deixou de conseguir respirar e morreu, sem espaço e sem luz.

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Gosto muito deste blog e dos seus membros e pedi ao Paulo Borges para participar. Espero contribuir de forma digna.
Um abraço a todos.

7 comentários:

Paulo Borges disse...

Bem vinda! Começa muito bem. Assim arriscamos morrer, preenchidos de tantas coisas.

Anónimo disse...

Quando as casas são assim, envelhecidas, belas e dignas, por serem sem camuflagem o que são, queremos ser lá dentro e lá fora. A Madalena é uma casa! Que moradas de silêncio e palavras nos promete...


Vim à janela de "casa" oferecer-lhe flores simples e sem nome. Inventei-as, dentro de mim, para si.

Bem-vinda!

Laura disse...

Caro Paulo,
vou manter o meu caos lá fora.

Cara Isabel,
agradeço as suas flores simples e procurarei retribuir.

Luiz Pires dos Reys disse...

Ah, Madalena, como eu gosto de dormir no chão!
Circular e circulante, essa sua casa? Imagino que o seja em todas direcções e sentidos, claro.
E, por certo, a parte habitável é o lado tido como "de fora": a parte de dentro, cabe à imaginação e vivência de cada um, o visitá-la, sem nela morar.

A verdadeira casa, na verdade, é a morada sem endereço.

Bem vinda, Madalena.
Aliás, (pres)sinto que já aqui esta(va).
Abraço de carinho.

Laura disse...

Obrigada, Lapdrey. Penso que teremos diálogos interessantes.

Anónimo disse...

Cara Madalena,

Fico contente por receber a "ideia" e também a poética dessa casa que a traz consigo. Gosto de casas e do que elas dizem dos seres que as habitam. Seja uma morada ou um lar, ou até o seu oposto. Fiquei interessada em conhecer-lhe os recantos, o cheiro, o sabor e o viver que nela haja. Porque é habitada por quem chega e se mostra espaço de si, para o outro.

Seja muito bem vinda a este espaço.

Abraço, Saudades

Laura disse...

Cara saudadesdofuturo (também eu as tenho), como diz o lapdrey, "a verdadeira casa é a morada que não existe", é o que connosco se movimenta em liberdade, a verdadeira casa, diria eu, tem asas. Eu é que agradeço terem-me aceite neste espaço. Somos todos para o outro, se o outro não existisse, nada existiria. Todos, mesmo os que pensam que o outro é propriedade.