O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 6 de dezembro de 2008

BARAKA

Em 1992, o cineasta Ron Fricke apresentou BARAKA, um documentário experimental filmado em 23 países. Ninguém narra estas imagens. Não há diálogos. As cenas não são coesas e os locais não são identificados. Viajamos sem pés, sem asas, entre mundos livres de palavras e inundados de sons, música e imagens. Não interessa onde estamos... mas em 104 minutos gravitamos em torno do planeta Terra; arrastamo-nos, somos empurrados, levitamos, reconhecemo-nos nossas mil faces mascaradas, chafurdamos em lixeiras, caminhamos nas ruas e não sabemos ao certo se somos o burro, o cão, a mulher ou o homem. Tudo é, e nós somos tudo isto!









20 comentários:

Anónimo disse...

É o panteismo que nos vem oferecer, a dissolução do homem no mundo!? Disso já há muito por todo o lado: falta é o conhecimento do Deus-Homem, sem o qual não podemos saber quem somos.

Ana Moreira disse...

Cara Maria da Conceição,

Pela rapidez da resposta, parece-me que não teve tempo de ver as imagens que acompanham o texto. Veja-as com a atenção, aliás digo mais, veja o documentário completo ( disponível no YouTube). O documentário é muito mais importante que as minhas palavras. Os conceitos são sempre discutíveis, as palavras também, e vias de conhecimento são inúmeras. Cabe a cada um escolher a que se lhe afigura mais próxima.
Para mim Deus foi sempre um conceito curto e o Homem - Deus que não reconhece o animal em si, parece-me votado à reprodução consecutiva de holocaustos, mas estou a falar de mim é claro!

A bem da discussão das ideias

Atenciosamente,

Ana Moreira

Anónimo disse...

Maria da Conceição,

Não penso que seja o panteísmo o que aqui nos é dado a considerar. Penso que é o caos, mas antes a experiência de caotização o que aqui nos é proposto pensar/ser. O panteísmo será caos? Não me parece. Deus no todo torná-lo-ia ordenado. E consegue Deus ser mais do que impotência, mesmo quando é DJ? O disco tem muitos movimentos simultâneoas, a música do mundo é caótica...ao homem compete perceber que há encadeamentos nos quais urge a sua geometrização dos movimentos do disco a par dos movimentos geométricos de Deus. Deus é discreto, não aceitaria a exposição permanente no todo, não está no todo, nem suportaria ser uma Evidência. Deus está no pormenor como já vários disseram, e é por aí que o Deus-Homem se encontrará como sendo, esvaziado pela impotência de qualquer poder terreno, capaz de Deus. Ao verdadeiro "crente" (prefiro, como o filósofo que vou referir, o "fiel") não interessa o poder, ou omnipoder de Deus, interessa Deus sem qualquer atributo.Desinteressa-se de Deus como isto ou como aquilo. Nem sequer quer conhecê-lo. Deus é-lhe desinteressante. Porque ao Deus-Homem/Homem-Deus não se oferece a qualquer relação. São um e mesmo. Mas enquanto isso não é apercebido há este caos, onde somos no seio de tudo para nada sermos e então nos desvelarmos para além do mundo e do todo: coisa nenhuma. O Deus-Homem só pode emergir de alguma experiência que nos conduza à afirmação: "eu sou aquele que nada é." E esta experiência só pode ser proferida no meio de tudo o que no disco gira e se diz e mexe. Porque é no caos, onde os conceitos se dissolvem que se assume que nem tudo pode ser concebido, como no mundo (que nada mais é do que o conjunto de tudo o que se define como "isto" ou "aquilo"), que há a fuga e a passagem para outros estados, ou preferencialmente incondições. Jean-Luc Nancy mostra como a fé, por exemplo, é bem diferente da crença, crer é ainda conhecer. E a relação entre Homem e Deus tem antes que ser de confiança máxima no que não se conhece até deixar de ser relação. Eu diria que devem ser dois os que se desconhecem: cada um e Deus. Por aqui talvez haja a unidade, a afinidade...a confluência. A partir daqui as palavras só atrapalham...

Desculpem as duas se traí por não entender o que tentaram pensar e também mostrar. Mas depois de ver e ler-vos, pensei alto assim...

Um sorriso para ambas.

rmf disse...

Cara Ana Moreira, sabes que triologia está na base deste filme documentário?

Deixo-te este link para uma pequena montagem que teve por base estes quatro filmes.
Koyaanisqatsi, Powaaqatsi Naqqoyqatsi. Em linguagem Hopi, respectivamente, O mundo em convulsão, O mundo em transformação e O mundo em guerra.

Ron Fricke o mentor, godfrey reggio o ideólogo, philip glass com a música e depois sucessivamente, Francis Ford Coppola, George Lucas e Steven Sodderberg com o último, Naqqoy. O baraka foi o retomar da visão cinematográfica do mundo. ~
A criação de um espaço próprio para o espectador colocado maravilhosamente entre a imagem e som, fazendo parte dela. Soa a conceito banal, mas se pensarmos que o conceito é dos anos 70 (Koyaanisqatsi levou cerca de 13 anos a ser produto final "inacabado) pode-se então imaginar a revelação apresentada ao Homem suportada por imagem e música magistralmente delineados.

São quatro filmes precursores, tais como tantos outros. São filmes especiais.
Veja-se a ficha técnica de cada um...

Já agora, porquê a escolha de um título em linguagem Hopi?
Vamos lá... google a trabalhar!

Um abraço!
Bem vinda de volta Isabel :)

rmf disse...

Pois... esqueci-me... Links:

pela Humanidade...
http://www.youtube.com/watch?v=aqvMlpzfUxo
http://www.youtube.com/watch?v=UmyIBE5hELA

para descontrair...
http://www.youtube.com/watch?v=pvSKBSXcVa8

Anónimo disse...

Sim de facto qual é a diferença essencial entre um ser humano e um galinha? Nenhuma

rmf disse...

Ora aí está...

Obrigado.

Anónimo disse...

A diferença essencial é que um ser humano pode amar uma galinha - embora raramente o faça - , enquanto o contrário jamais acontece.

Anónimo disse...

A obsessão do Deus-Homem e do Homem-Deus, sem mundo ou para além do mundo, é efectivamente a matriz do profundo holocausto a que estamos a destinar o mundo animal e a natureza, ou seja, nós mesmos! Perante isto, mil vezes preferível o panteísmo, embora, como todo o teísmo, ainda ilusório.

Ana Moreira disse...

Caro Anónimo,
Depois de se ver as imagens, talvez se compreenda a razão pela qual uma uma galinha dificilmente poderá amar um ser humano. Eu pessoalmente encontro grande paralelismo entre a desumanidade que está inerente à exploração em grande escala de carne e ovos e a barbaridade que foi a "Solução Final" implementada durante a segunda guerra mundial. Talvez haja esperança, talvez seja possível, se um dia passados muitos anos a grande família hebraica puder, no mais fundo, de si perdoar Hitler. Isso seria deveras uma grande conquista para a humanidade.
No entanto, antes de fechar este comentário gostaria de me perguntar:
- Quando será que o Homem acabará com os campos de tortura e concentração das galinhas e dos outros animais?

Anónimo disse...

Creio que, mesmo que um ser humano amasse uma galinha incondicionalmente, esta nunca o amaria, enquanto galinha, do mesmo modo. Mas isto não justifica os verdadeiros campos de concentração em que colocamos os animais. Quanto à pergunta, o homem só deixará de criar campos de concentração e tortura para os outros quando deixar de o fazer para si mesmo, sendo que o maior campo de concentração e tortura é separar os outros de si mesmo.

Anónimo disse...

Ana,

não sei se a família hebraica consegue perdoar. Celan escreveu na líbgua dos que mataram os judeus...dos carrascos...que ao menos estes exemplos...inspirem em nós a sombra gigante do Bem. Sejamos lá de que família formos. Olha, parece que não tem nada a ver, mas (tem) é por isso que gosto de minimalistas na música...um sorriso grande e fundo para ti


Vergílio,

agradeço a saudação e permaneço à espera de uma resposta à pergunta que ficou lá atrás no teu post (pode ser por "tu"?) "Esboço de Serpente...
Como vão essas leituras em dias frios?
muitos sorrisos e um bom domingo.

Anónimo disse...

A família hebraica dificilmente perdoa, sobretudo porque imagina haver sido vítima do único holocausto da história e do universo. E os índios da América do Sul e do Norte, e os tibetanos, e os animais?

Ana Moreira disse...

Querida Isabel,
Tu nunca me trais. Fala alto, canta, diz.
Conversemos então:
Baraka é uma palavra Sufi que significa, sopro de vida, bênção.
Baraka, no meu entender, não é um documentário sobre caos - desordem, mas sobre a obsessão humana de ordem. Civilização sobre civilização, sempre a mesma ordem que nos comanda a entrar à mesma hora no emprego, a ordem que nos faz caminhar nos mesmos trilhos, dia após dia, que nos categoriza em castas profissionais, ou não profissionais, etnias, raças, espécies etc... A ordem que nos afasta e aproxima, que nos segrega quando não somos úteis, quando não competimos, para alimentar a sua voraz e poderosa engrenagem. BaraKa é também um documentário sobre a impermanência dessas ordens, de como a injustiça exercida sobre as franjas da sociedade, mais tarde ou mais cedo, acaba por exercer uma pressão insustentável sobre o núcleo dessa engrenagem. A destruição de uma ordem a aurora de outra. A proposta de resolução dos problemas anteriores. Guerra sobre guerra sempre a mesma avidez. Ruínas sobre ruínas, construímos novas ordens. O planeta Terra é um cemitério de civilizações - ordem.
No entanto, Baraka é também um documentário sobre a intrínseca semelhança de todos os povos, de todos os seres na busca da felicidade e da transmutação da dor. A ascensão a algo mais universal e reunificante. Alguns dão-lhe o nome de Deus, outros almejam além dele a absorção indireccionada, multi abrangente, num Caos, ou Chaos, pré divino, num estado de pré criação.
No entanto há ainda a conversa com o Vergilio Torres... fica para mais tarde porque agora tenho que sair.
Até já!

Anónimo disse...

Ana, sim conversemos que estou aqui a pensar sozinha há muitos dias.

Vi os filmes com o meu sobrinho e com os amigos dele numas férias de Verão. Não estas, suponho. Falámos muito sobre eles. O grupo é muito activo e gosta de pensar. Os serões foram bem animados. Nessa altura lembro-me de ter pensado que precisamente por "cosmos" querer dizer ordem, mas ordem harmoniosa, me ser tão díficil considerar um "sistema" tal como os conhecemos, como um cosmos. Um sistema opressivo e causador de dor exprimível e inexprimível não pode ser para mim, herdeira na forma de pensar dos Gregos, um cosmos. Percebes o que estou a tentar pensar? Depois, por causa do significado da palavra "Baraka" e por defender que em todo o acto criativo há caos e cosmos, indistintamente - penso sempre que por causa disso, no "Timeu" de Platão, entra um personagem que é um Demiurgo cuja função é a de ordenar o que já está criado - penso que a redenção disto, a superação deste estado sistémico e sistemático das coisas e das relações entre pessoas e coisas e outros seres, está nesse sopro que por poder ser a "energueia" redentora é mais crucial do que o cosmos. Baraka é uma espécie de caos que ainda está disponível para mudar, trazer os "ventos de mudança". A benção tem que ser uma certa instabilidade que ou na velocidade ou nos movimentos da câmara nos permite pressentir um vento, um sopro caótico, caotizante que destrua esta "falsa" ordem. Porque onde há sofrimento não há harmonia. Foi neste sentido que me pareceu que nem Deus pode estar nesta ordem sistemática da infelicidade e do sofrimento, não havendo aqui lugar a uma visão panteísta, mas Deus ou o que se lhe quiser chamar, tem que ser este pressentimento caótico que nos pode livrar disto que é igual em todo o mundo e que só consigo dizer, como Dea Loher nos "Imaculados", é igual em todo o lado. Porque viver podia ser muito simples, mas nós transformámos o cosmos num complicómetro de infelicidade múltipla e encadeada. É por isso que gosto de pensar: Deus, ou o que se lhe chamar, tem que ter numa mão o caos e noutra o cosmos. Foi mais ou menos isso que Rilke pensou com a "mão direita" e a "mão esquerda" de Deus.
Com as duas envio-te um abraço longo.
Mas percebo o que me deste a pensar e faz sentido. Só tentei explicar-te o sentido do que comecei por te dizer. E, por isso, talvez consigas perceber por que razão tanto gosto de ouvir dissertar sobre o caos. Um sorriso

Anónimo disse...

Madre Ana: Hoje fui à missa. quando voltei a casa tinha a cozinha cheia de formigas. sem pensar duas vezes provoquei um "holocausto". qual acha que deve ser a minha penitência?

Ana Moreira disse...

Caro Anónimo,

Eu nunca vou à missa, penitências, nunca soube o que isso era. Já agora diga lá, isso é salgado ou doce?
As "diachas", da minha espécie, só dão açúcar nos beijinhos. Mando-lhe uma dúzia. Recomendo que ingira avidamente onze. Agora tome atenção: Não se lambuze, limpe todos os vestígios, contenha-se e deixe o último do lado de fora da janela. Da próxima vez vai ficar agradavelmente surpreendido ao perceber que o batalhão de formigas já não lhe assaltou a casa.
A bem das vítimas do açúcar.

Ana Moreira

Ana Moreira disse...

Caro Vergilio Torres,
Peço desculpa de ainda não ter respondido... mas posso dizer que foi com imenso prazer que li o teu comentário.

Conheci a obra de Philip Glass através dessa mesma trilogia no final dos anos 80. São peças magistrais, verdadeiras Óperas contemporâneas, reflexões impressionantes sobre o rumo do Homem. Estados de Transe em que por falta da palavra como mediador, acontece um fenómeno, no mínimo interessante, de "ligação directa" olho- cérebro num processo simplificado e familiar. Como se a imagem sempre tivesse sido a nossa língua ancestral, uma língua telepática, quem sabe?!
Agora quanto à questão da escolha dos nomes em língua Hopi : Os Hopi ( gente boa ou gente de bem ) é uma tribo de índios norte americanos que tal como outras tribos nativas desse continente sempre valorizaram o equilíbrio entre as forças naturais da Terra: o Grande Espírito ou Avô. Segundo consta existe uma profecia Hopi que aponta para um apocalipse, apocalipse esse que seria o culminar de uma era marcada por um grande desequilíbrio, Koyaanisqatsi, em que os recursos naturais seriam explorados indistintamente, vampirizados, Powaqqatsi, e em que o homem se afastaria da Terra e por isso da via espiritual tal como esta tribo a concebe, fazendo da vida uma guerra constante,ou melhor da guerra um estilo de vida; Naqoyqatsi.
Esses três documentários giram em torno da vida tal como nós, hoje, a concebemos, e parecem confirmar a profecia Hopi. Esta vida é o produto directo e formatado pela nossa incapacidade de adaptação. Nós nunca nos adaptamos ao meio, o que na realidade fizemos foi adaptar o meio às nossas necessidades. A primeira das quais, talvez tenha sido a de nos sentirmos seguros, apaziguar os nossos medos mais profundos, o nosso sentimento de inferioridade. Mais do que um apelo ao panteísmo, gosto de pensar nesta trilogia como um dos primeiros documentários de apelo ecologista. Ver o planeta Terra como um organismo vivo interdependente é uma visão pertinente tanto do ponto de vista científico como espiritual.
Baraka parece-me ser mais que um resumo dessa trilogia. No meu entender é a peça que torna a trilogia numa tetralogia e que a estende a todos os povos, numa linguagem menos artificial que Naqoyqatsi e com uma perspectiva mais auspiciosa que qualquer um dos documentários precedentes.
Haveria mais a dizer mas por agora calo-me!
Ah! Obrigada pelas tuas curtas metragens. Cresci a ouvir Radioactivity dos Kraftwerk.
Até breve...

rmf disse...

Concordo inteiramente contigo quando dizes que Baraka é mais que um resumo, é verdade.

Não sei se me expressei bem. O conceito é muito anterior ao último filme, já agora produzido por Mark Magidson, produtor de Dead Can Dance, gostos musicais à parte ;) e nessa medida uma forma de ser completada uma triologia. Aliás, para quem já viu estes filmes 1000 vezes cada um, não só encontra uma sequência ou fio condutor da realização bem como planos refeitos anos à posteriori e material vídeo em base de dados. Mas pronto, ainda bem que só falei de realização...
É-me mais confortável de momento, sinceramente, não me encontro muito disponível para entrar a fundo no tema por ti sugerido que, diga-se em abono da verdade, é muito muito consciência planetária!
Foi bem lembrado este post!
E ainda por cima, logo com a imagem dos pintainhos em passadeira rolante... essa é uma das sequências mais brilhantes em cinema... avassalador! Soberba analogia do que é ser, estar, viver em sociedade.

Um abraço, Ana! E obrigado por Kraftwerk!

Iolanda Aldrei disse...

Baraka chegou a mim de um jeito muito especial e mesmo foi mágico, completo, ciclo, reiteraçao, maravilha, ritual... humanidade e divinidade fundem-se na criaçao de um mundo múltiplo, nos horrores e nas delícias... Baraka, a paz o templo desde os cumes e as ruínas.