O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Dúvidas

Certo dia, como lhe era habitual, a Dúvida despia as suas roupas e, porque o tempo assim o permita, lançava-se ao rio para se dedicar horas a fio aos prazeres da natação...
Descalçava as pequenitas sandálias despia a linda túnica branca soltava os longos cabelos azuis enrolados atrás da nuca e, de um movimento apenas mergulhava fundo nas águas profundas deste rio. O Rio que tão bem a conhecia. Mas um dia houve em que a Dúvida, após andar horas a fio rio abaixo rio acima sentiu necessidade de regressar à segurança da Margem... Nesse preciso momento percebeu o quão longe estava dela, o rio tornara-se demasiado largo à medida que avançava até ao Mar. Reuniu todas as forças que lhe restavam, traçou um rumo seguro para evitar a corrente e seguiu este caminho; quase já sem energia. O vento estava de feição, a corrente abrandara e a Dúvida, agora banhada por lágrimas de alegria viu a sua Vida andar em frente, rumo à escarpada Margem que lentamente ia crescendo a seus olhos... e gritou alto. Muito alto gritou a Dúvida para que a Margem lhe desse a mão. Os últimos pedidos de socorro roubaram-lhe o que restava da mínima energia reservada. E a Dúvida sucumbiu descendo lentamente em direcção ao fundo... profundo Rio que a recolheu em seu leito. Silhueta azul que até hoje aí descansa... Moral da história? Não há Margem para...
As suas águas trazem a lembrança de um amor perdido algures nas águas turvas e profundas imbuídas de tristeza.
As duas vozes
VT & Nas asas de um anjo

15 comentários:

rmf disse...

À Isabel Santiago, ao Paulo, à Sereia e ao Mar de Luiza, um abraço muito especial. Bem hajam!

Paulo Borges disse...

Será este o destino de todas as dúvidas?

Abraço!

Anónimo disse...

Mas que interessante!

Anónimo disse...

Duvido, divido.

Anónimo disse...

Um texto muito interessante.

Anónimo disse...

Não há margem para... haver margens.

rmf disse...

Paulo, estou convicto que sim. Embora inerte existe.
E pode acreditar que é o único sítio onde verdadeiamente me encontro com ela, olhos nos olhos, mas sempre, sempre por breves momentos, porque levo no peito o ar que roubei à atmosfera e no exacto instante do contacto puxam-me novamente à superfície, simplesmente para respirar o alívio.
É uma metáfora. Tanto poderá ser rio como Mar porque também é rodeado ou ladeado por longínquas margens de razão. Razão terrena pelo Homem povoada. Este chão que acreditamos ser nosso ao pisá-lo sem sombra de dúvida... peço desculpa, sem margem para dúvidas... isso é outra história... :)

A minha sincera opinião, era bom que assim fosse... e será... se bem no fundo acreditarmos que todo esse Rio ou Mar corre dentro de nós.

Abraço!

Semente disse...

Fiquei com uma dúvida...

:)

Li a 'estória' linda e pensei:

Por um lado, não há margem para dúvidas... porque a dúvida não conseguiu chegar à margem e, perdendo as forças, sucumbiu ao Rio ou ao Mar;

Por outro lado, isso quer dizer que a dúvida morreu. Logo, quer dizer que foi esclarecida?

Ou... quer dizer que a dúvida, não conseguindo alcançar a margem, morreu sem ter conseguido uma resposta?

Hum...

"Ser ou não Ser"

Caro vergílio, personifico essa dúvida, em certos dias... e como fiquei na dúvida, resolvi perguntar...

Resta saber se vou chegar à margem ou não. E se lá chegar, quer dizer que a minha dúvida morre (porque é esclarecida) ou vive (porque alguém vai ter outra dúvida a seguir à minha...)

;p

aahahahahah
Que confusão!

Beijinhos, Vergílio*
E Obrigada pelo abraço que recebi*

Anónimo disse...

Duvido.

Anónimo disse...

Descalço as sandálias porque, antes de saber que o texto me era dedicado, vi as gaivotas e vi um promontório que é um santuário. Este texto é um nicho na parede da catedral.
Os meus cabelos não são azuis. Só os pés, depois de sair dos quadros de Chagall e dos textos e das paisagens da Saudades. Mas é com os pés azuis que entro no Rio. Não sou a Dúvida e não consigo ir tão longe quanto ela. Não sei o que é a margem, mas também não sei o que é o fundo. Algures entre o fundo e a margem, entre a comoção e o sorriso, entre a palavra e o silêncio, entre o rasgar o silêncio e o rasgar a palavra, Vergílio, gostaria que soubesse que rasgaria a mão na rocha para salvar a ideia deste texto. Rasgaria também a mão porque escrever é ter na mão uma ferida que vem de não ter margem e não ter fundo. E é essa sabedoria que me comove no texto que me é dedicado, no dia em que não é apenas a mão que escreve que está ferida. E não há margens. Há esta dedicatória que redime o dia que não tendo fundo, não tinha fim; não tendo margens, me enrolou em remoinhos de angústia.
Recebo, Vergílio, este texto como uma mão estendida em cinco pontas de beleza, como se fosse uma estrela para iluminar os sonhos e os dias. E fecho-me com o seu texto em silêncio, visto-me com ele para deixar de sentir que cheguei nua e com frio. E neste escrever deixo um movimento de gratidão para receber como fundo e fundo e não apenas à margem do que escrevi.

rmf disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Sereia, inerte. Tal como um cristal... sei que me percebes.
E todos sabemos que as dúvidas existem, exemplos ou inertes, dentro de nós. Falo por mim. E ser ou não ser só me reporta à caveira olhando-nos para dentro, à frente da mão direita esticada (dida escalia de Shakespeare) ou porque razão criou Deus Adão... mas não sairíamos daqui… (e nunca sairemos)
A busca, a procura, a interrogação de certo que reflectem uma dúvida inicial e uma tentativa de alcançar uma resposta. De quem, ou do que depende a salvação da dúvida? Uma dúvida grande a minha... se não, não vos tinha pedido respostas...
E agora que todo o pragmatismo vá por água abaixo... o meu, entenda-se.
Isabel,
Vou ser apenas aquilo que estas palavras possam permitir... minha limitação. "Não sei o que é a margem" - nem eu.
Se parasse por aqui seria o mais certo da minha incerteza... da minha dúvida. Seria mais ajuizado. Acabado de despir. Do meu acreditar que não há margem e tudo é infinito. Ou haverá? Não sei... "Rasgaria também a mão porque escrever é ter na mão uma ferida que vem de não ter margem e não ter fundo" - É um amplexo sufocante! É ideal. É lindo. É muito grande. É a razão pela qual. É a vida do porquê se escreve. Enquanto vida, enquanto esta ferida vingar escreveremos, até deixar de ser ou ter motivo.
Ao escrevê-lo, esta história, não tive senão a ideia, no entanto, pela piada fui sendo arrastado por ele, pelo texto, por ela e as suas palavras, até ao ponto de não me acreditar nem me reconhecer no que escrevi. No entanto, tenho em mim a sensação de estar vivo. Melhor, convenci-me que tudo funcionaria assim, na vida, nos pensamentos, não personificações do intelecto. Dou voltas à cabeça… É uma ferida aberta, é olhar para ela e desejar a incúria para sempre, apenas e só para ter a certeza que não haja margem de salvação, nem porto de abrigo, nem mão estendida nem cicatrização. É muito forte, chega a ser um verdadeiro confronto pensar que se cura quando se deseja. Mas não, perco-me. E não vejo solução. Ou vejo… Ignoro-me dúvida e logo encontro uma outra escarpa que abriga a razão. Esqueço-me grande tendo-me pequeno.
Esmiúço-Me vida em um ínfimo grão de pó. Aparo arestas e das raspas que sobejam construo a ponte sobre a qual passeio. O gigante viaduto fragilmente alicerçado. Isabel, essa angústia conheço-a tão bem... Não há angústia na ciência fechada numa caixa de papelão... por favor, essa, não a salve deixe-a ir ao fundo... por mim. É a palavra alicerce minha religião. A razão que virada estrela traça as escarpas à sua passagem, rasgando-as. Vós sois esta margem de palavras que no último momento esticou a mão à minha dúvida, acreditando-a. A nossa angústia. A nossa dúvida. Aqui, com medo da minha, paro. Releio tudo mais uma vez. Não acredito em nada do que escrevi. E a ferida, essa, veste a túnica branca e saio da água ilesa. Obrigo-me a terminar.
Não sem antes agradecer agraciando-vos.
Por religião de um abraço!

P.S – Vã tentativa de expressar a forma superior do agradecimento. Porque até hoje não arranjei uma palavra que resuma tudo o que para mim é o belo fechando-se em um significado.

Anónimo disse...

Saúde, Vergílio! Antes a Vida que a Dú-vida...

nas asas de um anjo disse...

belo texto, é uma forma "encantada" de discorrer o pensamento...
e ainda bem q a dúvida existe pois acredito q, se tudo nos fosse dado sem a hipótese da heurística, a nossa existência não seria tão interessante!
gostei especialmente deste excerto:
"profundo Rio que a recolheu em seu leito. Silhueta azul que até hoje aí descansa... "

nas asas de um anjo disse...

ah Vergílio, adorei a surpresa matinal, mt obrgda!

acho q ficou bem, sereno...

bjs(",)