O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 23 de setembro de 2008

Um Jovem actor e uma peça de teatro

“ (…) quero dizer que a língua em que me seria, talvez, dado não apenas escrever mas pensar, não é nem o latim, nem o italiano, nem o espanhol, mas uma língua de que não conheço uma só palavra, uma língua com que as coisas mudas me falam e na qual deverei talvez um dia, do fundo da campa ficar-me perante um juiz desconhecido.”
Hugo von Hofmannsthal, Carta de Lord Chandos

1. Prelúdio, o actor

Um aluno é, depois do fim, uma visita e um hóspede desejado na alma. Muito antes das chuvas e do frio, recebi o Miguel Raposo numa sala de aula, repleta de luz e do cheiro das uvas vindimadas. O Miguel chegou cheio daquela timidez que os que são de outrora trazem no corpo. Logo na primeira aula escondeu-se nas colunas gregas com que falo. Mas deixou audaz o olhar. E olhava-me e tinha já consigo essa qualidade invulgar que os que ainda são só bons têm de ouvir com os olhos. O Miguel sempre deu formas ao que se ia escutando. Depois percebeu que escutava mesmo quando eu já não falava. Escutava sempre. E, suponho agora, que por ser de uma época antiquíssima e de um reino inexistente, tinha receio de falar. A sua língua rara não tinha falantes nem nomes. O Miguel falava a língua esboçada por Hugo von Hofmannsthal na Carta de Lord Chandos. Essa convicção levou-me a temer não conseguir ser sua interlocutora. E tremi antecipar perceber que não iria escrever, sentir dificuldade em redigir. Não por não saber construir frases ou textos, mas porque no seu reino as palavras já então eram actos que deixavam com que as coisas mudas e os gestos imperceptíveis se manifestassem até à evidência que aclara o espírito com a sua revelação. Viria a confirmar-se o receio. O Miguel estava sempre a expressar-se e os testes tinham textos mínimos e que eu traçava de “incompleto”. Essa mentira doía-me. O Miguel era um dos mais completos seres da aula e eu escondia-lhe isso. Um dia, não sei como, ele percebeu onde é que em mim eu escondia essa verdade. Soube disso porque deixei de sentir essa dor da mentira. O Miguel levou a dor e a mentira dentro de um sorriso. Nesse furto delicioso fui para dentro do seu reino e da sua linguagem. E passámos os dois a falar entre nós das coisas mudas e com gestos imperceptíveis. As paisagens do seu reino único e inexistente são as da memória última das passagens pela Terra da Nostalgia. Ele era o único habitante de um mundo que me perseguia a memória e quando chegava pintava o céu da sala da cor das suas passagens. Terra da Nostalgia. O Miguel chegava e eu sentia-me como uma personagem da Llansol, a rapariga com Nostalgia do Poema. E sabia que ele não escrevia. As não-letras do Miguel, a sua caligrafia aguada, como se fosse aguarela desfeita pelas chuvas do dilúvio original, tinha só cor. Não tinham formas as suas não-letras. Que cor? Essa cor era a cor por haver nos pintores e que vem quando se lê alto os versos da saudade, quando se lê Pascoaes. Foi por causa do Miguel que um dia lhes citei de cor passagens d' O Pobre Tolo. E o Miguel ficou feliz e nesse dia as suas asas azuis saíram fora da camisola. Mas o seu olhar continuou, quando não me olhava, dirigido para o chão. E ele é do Alto.

2. Os estúdios do encenador divino

“Nenhum rosto vivo facilmente se revela, e contudo basta um pequeno esforço para descobrir-lhe o significado. Penso – arrisco eu –, penso que o importante é isolá-lo. Só quando o meu olhar o destaca de tudo em redor, só quando o meu olhar (a minha atenção) impede esse rosto de se confundir com o resto do mundo evadindo-se numa infinitude de significações cada vez mais vagas, exteriores a si, ou quando, pelo contrário, obtenho a necessária solidão pela qual o meu olhar o recorta do mundo, então somente o significado desse rosto – pessoa, ser ou fenómeno – afluirá, condensando-se.”
Jean Genet, O Estúdio de Alberto Giacometti


Desconheço os estúdios em que as suas potencialidades divinas se foram abrindo ao presente. Não os conheço. Mas esses estúdios, pelo que são, devem ser inacessíveis às multidões. Esses estúdios são grutas. Grutas – onde o belo se torna mais belo e a bondade é o pulsar do coração – que não devem ser perturbadas e invadidas pelo nosso ruidoso e ruinoso respirar. Esses são os estúdios da acção superior: da acção que reinicia a cada instante o que fazemos desaparecer no mundo, que restaura os gestos universais da nossa pertença a todos os seres e estados. Esses estúdios são as escolas verdadeiras que não se desligam nem das origens de uma tradição e/ ou de todas e fazem da atenção o único método e a melhor pedagogia para salvar o indivíduo do tempo e do grupo. Mas essas mãos que o trouxeram ao aqui e ao agora sem que ele perdesse a sua matéria antiga, o seu espírito em fogo, deixaram, num certo sentido, de ser invisíveis. Dessas mãos e desses espíritos que o mantiveram intacto, deixando que a sua voz, o seu corpo e o seu rosto nos falem das coisas mudas e dos gestos imperceptíveis só posso dizer que são como as de Giacometti nos estúdios. Essas mãos que o recolheram como matéria incandescente e deixaram que a sua solidão (quem olha o Miguel lembra-se sempre daquele verso do António Gedeão, como um astro perdido, que [não] arrefece…) vibrasse no mais afastado recanto da alma de quem o vê e o ouve, essas mãos digo e sinto-o, são criadoras e educadoras no mais autêntico sentido do termo. O Miguel foi tocado por mãos de deuses, não sei se divinos ou não. Mas agora já não olha para o chão. Ou já não olha quando se expressa. O Miguel olha o Alto e fica tão bem a olhar para lá! Ouve-se na peça: Por que é que o caminho para casa é o mais bonito? / Porque é o único!
Não sei se conseguirei dizer-vos com palavras, e sem verem os meus olhos tremeluzir de água comovida, a alegria embriagante de o ver um aluno trepar por entre os sarmentos das vinhas (como diria a Saudades do Futuro) a caminho da sua morada e ser no seu lugar, na sua imobilidade última, a sua mais radical verdade, ser um ser irradiando a sua luz própria ilimitadamente. O Miguel é um sol a formar-se no cosmos! Olhar o Miguel no palco a representar foi como se o palco fosse o lugar Grego onde Diónisos se consagrava na sua dor e no seu grito de morte renascida. O Miguel e os outros dois actores – Carlos Malvarez e Sílvia Almeida – chegam ao palco do Teatro Bocage, na Graça, depois de terem improvisado, durante um mês, gestos para um conto recolhido por Teófilo Braga: Pedro das Malas-Artes. Mas improviso quer dizer experimentar o estado original do homem quando era todos os seres e por isso ser de gestos e expressões que são tentativas e tentações fabulosas que a humanidade atravessou até ser como é: mecânica, previsível, anti-poética, desengraçada e desasada. Os três jovens actores são uma matéria primitiva que experimenta e está entre os seres que morrem e os que renascem, entre os seres que andam e os que voam, entre os que dialogam e os que fazem silêncio, entre os que agonizam e entre os que exultam. Naquele palco, a vida é um esboço e uma aprendizagem que procura um ter sido em que dizer era tocar e ser tocado por todo o tipo de presenças e de formas. Naquele palco, três jovens actores moem as palavras que tomamos como única matéria que mata a fome do espírito e conseguem, pelo chamamento da Seara antiga, o pão do céu. O pão do céu é aquele que o corpo coze quando o silêncio ardente das palavras alastra pelos membros, pelos músculos e pela matéria, transformando a força em gesto. Expressão entusiasmada do que no homem é divino: Eros e a Bondade.

3. Convite

“É necessário moer muito tempo as palavras e morrer em silêncio para cozer o pão do céu.”
Christian Bobin, La Présence Pure et Autres Textes


Explorar os caminhos mais fundos da alma: Pedro das Malas-Artes é uma possibilidade de chegarmos a esse estado em que uma voz guardada e aguardada nos pede pra esquecer o nome e sermos como o Parvo, Ninguém. E, então, retomarmos ao único caminho. A casa. Antes disso, se conseguirem, passem pelo Teatro Bocage. O azeite – e este é o Teatro do Azeite – liga tão bem com o pão! O pão do céu que não sendo feito de palavras intactas é, o único que mata a fome do espírito…Afinal, o homem pode tocar-se sem, antes e depois, de trocar palavras. O Homem pode tocar-se sem se trocar…O abraço que recebi redime a dor, porque o Miguel é feito do silêncio que transforma a nossa força em gesto puro. Tinha chovido e estava ensopada, mas pela primeira vez desde há muito não senti frio e o Outono não tinha começado. As suas asas azuis pintaram-me o espírito de um azul celeste. Ele é do Alto.

Nota: o Carlos Malvarez e a Sílvia Almeida são igualmente pássaros brilhantes…desses que nenhuma ciência saberá sequer o nome.




8 comentários:

Anónimo disse...

Antes do ocaso deste dia e para lembrar os alvores da visita a Amarante, em Junho passado, venho só lembrar que esta bela imagem é de Karin Somers. Também ela como o Miguel, uma excelente artista.

Anónimo disse...

O calamento não fala mas vê. Cliquem duas vezes em cima do cartaz para ampliar a imagem.

Anónimo disse...

Vamos lá ver a peça! Vamos ajudar os jovens actores deste país para que, para sobreviver, não tenham que participar em más telenovelas!
Ora pois, vamos lá ver se o olhar do Miguel é o olhar de outrora! Vamos provar do pão do céu: já fomos à Folia e comemos pão. Agora, vamos ao Pedro Malas-Artes provar desse outro pão do céu! Vamos... vamos!

Anónimo disse...

Para irmos para o Teatro Bocage devemos entrar pela Rua Damasceno Monteiro e, antes de chegarmos ao Rest."Via Graça" voltamos à direita na Rua Manuel Carlos Guedes. A rua é a descer e o Teatro está identificado com uma luzinha azul. Como as asas do Miguel...

Miguel Raposo disse...

Que dizer? Falar... É de facto um mecanismo incompleto no que toca à expressão da alma. Por isso, tendo em consideração que esta mera palavra não vai desenhar aquilo que o meu coração pintou dentro de mim aquando a leitura do seu texto.... Obrigado.

Ana Moreira disse...

Só agora tive palavras. Fiquei a saborear as tuas, li e reli-as.

Descobrir no olhar as palavras caladas e, sabê-las inteiras na sua completude intocada; conhecer o fervor das almas pela redondez desse silêncio, é um talento de espelho...de um espelho de água!
Obrigada por existires,Isabel!

Anónimo disse...

Passarinho José:

eu sei que falar é um mecanismo incompleto nos seres completos. Reli, entretanto um caderno que me ofereceram no fim e comovi-me com a frase de alguém que escreveu "ainda bem que apareceu na minha vida, ainda que sob a forma de professora". E desatei a rir, como nos acontece às vezes aos dois e nos acontecia na aula. Adoro o "ainda que sob a forma de professora". Mas não há mesmo nada para agradecer. Sermos amigos é já o agradecimento com que a Vida nos celebra.

Ana
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andamos com abraços atrasados.
Obrigada eu e o resto é como diz o passarinho José...a fala é...

visita crepuscular, calamento, convidada e nota, obrigada pelo apoio!

Anónimo disse...

Parabéns!...Um abraço!