O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 3 de agosto de 2008

A Falta, a Rasura da Palavra


Para a Isabel, a agradecer o tudo que conseguiu para o poeta. Para a Luiza que traçou em azulejo o desenho para a moldura do quadro que falta e para os Paulos que o pintam no pensamento e contemplam a plenitude dessa falta desde a sua origem.

Falta um quadro, Isabel. Sei que falta um quadro, mas não sei qual é nem como ele é. Já olhei várias vezes para os três e... Mesmo mudo, o poeta haveria de ter um tom, um som, uma sílaba para cobrir o branco da tela; um travessão, como uma ponte, para atravessar a palavra e dirigi-la para o coro que são todas as pedras cantáveis que a montanha guarda. Ou os sons frescos do rio que alisa as pedras moventes debaixo do sol. Se eu fosse Gabriela soprava uma pedra. Do seu arder desenharia mil tonalidades e figurinhas em cadernos com veios de folhas e flores de silêncio em cima da estante. Esse seria o quadro que faltava… E haveria sempre luz para os candeeiros das mesas, e flores para as jarras. Haveria decerto uma casa feita de palavras e palavras a arder nas chaminés do Inverno. Mesmo mudo, Deus não iria deixar uma nota sem cor para o canto do poeta. Se eu fosse Matisse desenharia os corpos, a dançar em roda, em tons rosa sob um céu azul. Teriam os pés verdes, quando o arroz estivesse a romper, depois seriam de amarelo-torrado, os corpos da dança de roda, quando as palhinhas do verão se soltassem sério o vento a bailar com as sementes, e saltariam para os pés dos dançarinos, em movimentos leves, vendo-se cair... Se eu fosse Kandinski, haveria festa de cor. As casas garridas fariam contraste com o negro dos ramos das árvores de Inverno, e o mundo seria pintado de pinceladas grossas para as palavras mais pesadas, e de geometrias sopradas em todas as direcções do espaço, pelo geómetra do mundo, para as palavras soltas do poeta. E haveriam de traçar na boca do poeta o ritmo dos pés dançantes de Matisse….

Se eu fosse Delvaux, uma mulher de olhos grandes e vazios, como pedras mudas, haveria de esperar na estação a viagem que nunca acontecia… E esperaria com a mesma fé essa partida ou essa chegada confundidas numa lágrima que o poeta não soube chorar. Mas se eu fosse Chirico, desenharia no centro da praça dois amantes sem rosto beijando-se no silêncio da tarde, a arder ao fundo do quadro. Mas eu não sou nenhum deles. Sou o quadro que falta. Sou um poeta sem palavras à procura de uma falta. Falta um poema, para esse quadro, uma sinfonia para esta nota; uma sílaba de sal para o mar; um grão que fosse, apenas, uma partícula a pairar na distância de um milheiral em chamas; uma asa salgada a acenar na distância; um pássaro para guardar na asa o tesouro da incompletude do poeta… Mas há uma falésia que o céu atirou para o esquecimento; um barco de Renoir que se afasta nas águas do Sena, levando dentro o meu vestido de seda para as horas do esquecimento de mim…Uma voz de guitarra para tingir a água; um país sem fronteira cheio de braços; um saltimbanco de Picasso, um cavalo azul sob fundo azul e sol e tudo, a romper a superfície do quadro do esquecimento. E a tristeza é uma mulher de negro a chorar na praia, e podia ser em Portugal, no mundo, nas galáxias que moram na lonjura de uma palavra para acender dentro de mim, fora de mim, uma cantografia que não fosse este balbuciar de prece incerta a um deus que dorme; uma partitura sem palavras nem sons… A tua voz, mãe! A tua voz cantaria o quadro que falta e eu não me deixaria cair pela rede desta tecitura sem texto, feita de ausência e de memória. Lembro um quadro… E as mãos haveriam de segurar outras mãos e depois largá-las no espaço cartografando-as na cantografia da paisagem sem quadro.

8 comentários:

platero disse...

não sei comentar

sei dizer que gosto muito

beijinho

Paulo Feitais disse...

:)

Semente disse...

Um dia esse quadro - que és TU - vai ser pintado com cores de vida, cores transparentes à vista desarmada. Numa espécie de segredo bem guardado, desvendado só aos olhos mais puros que esse quadro - que és TU - se queira mostrar.

Poeta de cores, de telas, de sons, de silêncios. Poeta sem espelho que reflita uma imagem de poema vivo.

Se o quadro que falta é esse... há que saber esperar pela inspiração do poeta e do pintor, para fazê-lo surgir.

A seu tempo virá a obra prima.
Assim acredito*

Anónimo disse...

Não falta quadro nenhum. Há um quadro que é canto puro e está na voz da mãe. Esse quadro de saudade e som é o único e o mais belo, o mais denso e o mais forte, o mais puro e o mais original, tem contornos e não se limita, não tem formas porque tem forças. É um agenciamento potente e impotente em nós. Em si é de fulgor e mel, de brasa e gelo, e é tudo e eu vejo-o das montanhas e dos instantes de eternidade, correndo pelos seus textos, na metamorfose dos pássaros. Saudades, eu sei o seu quadro. E entro por ele adentro pelo caminho das hortênsias. Não vou sequer procurá-lo. Vou só guardá-lo um pouco mais dentro de mim. Mas ele é seu.

Anónimo disse...

Não falta quadro nenhum. Há um quadro que é canto puro e está na voz da mãe. Esse quadro de saudade e som é o único e o mais belo, o mais denso e o mais forte, o mais puro e o mais original, tem contornos e não se limita, não tem formas porque tem forças. É um agenciamento potente e impotente em nós. Em si é de fulgor e mel, de brasa e gelo, e é tudo e eu vejo-o das montanhas e dos instantes de eternidade, correndo pelos seus textos, na metamorfose dos pássaros. Saudades, eu sei o seu quadro. E entro por ele adentro pelo caminho das hortênsias. Não vou sequer procurá-lo. Vou só guardá-lo um pouco mais dentro de mim. Mas ele é seu.

luizaDunas disse...

Saudades,
Faltas em quadro, em quadra. Essa falta advirá da abundância que és. O tanto não caberá numa frase, num traço, transbordará sempre, não caberá em ti.

Anónimo disse...

Luiza,

Nem sempre desço aos post's antigos... Estou feliz porque trouxeste os azulejos para o quadro que faltava:) E porque o que não cabe em mim é o que dou e quando o dou volta a transbordar,mando-te umas quadras pintadas em azulejo azul português:

A quadra que falta ao quado
Vem pintada no azulejo
Dos olhos de quem me lê
Tranborda a água do Tejo

Transborda do coração
A falta que abunda em mim
É mais além, meu irmão!
E a quadra não terá fim.

Tenho uma quadra guardada
Para o dia em que morrer
Direi que a quadra fechada
Guarda a chave de nascer.

Uma quadra que transborda
Do coração que não há
É como um eixo sem roda
Gira, mas não chega lá.

Não cabe dentro de mim
O coração que te dou
O quadro será por fim
O fim do quadro que sou.

Falta sempre o que me abunda
O amor não tem razão
Não cabe na frase muda
Muda a voz ao coração.

luizaDunas disse...

Saudades,

Não tenho fôlego para acompanhar pela palavra o ritmo d'A Serpente. Por isso te disse que voltaria aqui, e pensei que voltarias também.



"O quadro será por fim o fim do quadro que sou"

A água do meu Tejo é de um azul sem céu nem fundo, apenas lágrimas de um esperançar morrer tão belamente finda no leito amado de um Amor transnavegado.