O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 19 de agosto de 2008

Anotações*

Sim, hoje regressei ao sonho
da morte como outra invenção,
talvez como a única verdade dentro deste equívoco.
Diego Doncel

Sei que o primeiro verso não principia o poema. Que o primeiro verso não é a síntese anterior de outra coisa mais. Não anuncia, não vem primeiro, nem tão-pouco fica. Talvez transite porque trespassa primeiro o verso segundo e vai depois na esperança do mesmo. É qualquer coisa triste. Por isso todo o poema é contínuo, porque passa por uma linha desaparecida no seguimento das palavras que encontra, está para além de si mesmo, é a sua própria invisibilidade, o seu próprio desaparecimento. Talvez queira ser simplesmente tudo. Ser sem explicar. Ser sem si mesmo. Ser como o poeta sem seu próprio destino. Ser assim desaparecido e escrever apenas mais um poema, um último primeiro verso na solidão de ser apenas um. Ser tudo o que fica e tudo o que vê desaparecido, deixado ir. É uma existência sem explicação. Por isso o poeta escreve o poema na posição excepcional de ser todo o mundo pronunciado. Por isso fica caído nas palavras que encontra enquanto pensa, enquanto espera. E espera apenas as palavras, porque todas elas são todos os anúncios possíveis de uma só unidade que se desprende. E tudo se desprende enquanto escreve o primeiro verso. Tudo faz uma só existência em movimento em seu próprio pensamento, em seu próprio desaparecimento. Não foge mais das palavras, vivem puras em si para sempre em criação, e passam juntos, seguem tão móveis como se estivessem mortos, tão inúteis como se estivessem vivos, às vezes em silêncio, mortos e acompanhados. E o nada surge no encanto geral de tudo, e o poeta parece morto, trespassa também, meio acordado no claro-escuro do seu pensamento, com os olhos postos não se sabe bem em que visão, pois ele vê em cada canto o horror de tudo, em cada horror o encanto de tudo, e leva uma vida lenta, restituindo o que não conhece, o que tão certamente desconhece. E esquece a mentira, olha vago para ela. Para a vida. E esquece também a literatura. Esquece toda a poesia que conhece. Talvez queira ser sem explicar. Procura os cemitérios. Procura as igrejas. As planícies e a morte que nelas passa e que nunca chega a percorrer. As pedras puras. As casas puras. A idade pura. A sua própria loucura tão pura como o seu próprio nascimento. A essência de quem procura. E diz: estou morto. E vê a sua loucura tão certa como a altura de toda a devastação. A loucura em redor da escrita. E vê a loucura entrançada na cabeça das crianças puras. A loucura tão pura como elas, desprendendo-se, agitando os lados da sua inteligência. A loucura agarrando-se-lhe nas palavras, a loucura profunda de sentir depois, de viver depois, de ser depois entre a penumbra, caído, louco, desaparecido, morto. Porque o poeta quer a máxima visão de todas as loucuras imagináveis e por gritar. Vê sua mãe a olhar para ela. O seu sangue menstrual. Envelhece no seu sangue. Enlouquece também. Procura a Mulher. A mais bela diferença a inspirar felicidade. E decorrem as frases em redor do útero de ambos. Vão juntos. Vão sempre juntos como quem procura o repouso de um movimento. O poeta tornou-se poético, numa vida tão pura como qualquer outra. Uma vida da qual se desprendeu também. Perdido, longe, só, morrendo agora, tão novo e invisível na mais pura liberdade da poesia que escreveu. O primeiro verso não tem desígnio, como o poeta não sabe para onde vai, e enquanto os mortos vão receando a solidão, e os vivos se fazem desaparecer, os corpos vão sendo engolidos à procura de nascerem também.
*Publicado primeiro aqui.

7 comentários:

Anónimo disse...

"E o que não sei é se pode morrer um morto."

Diego Doncel

Unknown disse...

Pode... nascendo. ;)

Unknown disse...

como o escuro da noite escurece clareando...

Anónimo disse...

...Foi uma viagem intensa a que a sua escrita percorreu em mim. Do primeiro verso que não principia o poema levanta-se uma espécie de sinfonia em fuga e que volta ao início, num bailado que persegue uma ideia perdida aqui reencontrada logo no verso seguinte... No primeiro verso, no último verso. No trânsito que percorre o efeito da alma à letra, do pensamento ao deserto. O poeta não desaparece. Espera e escuta. Segue a ponta que se solta da página branca em movimento que é o seu mesmo desaparecer. Vêm-lhe de todo o lado os versos que se levantam em movimento à procura do poeta.
Senti especial vibração ao ler este seu texto. Como ele compreende e ouve a voz do poeta desaparecido no poema!

Um grande abraço de parabéns por tão belo e inspirado texto.

luizaDunas disse...

Guardar na escrita, como num abrigo, suspiros e suspeitas para que não se desvaneçam ao vento maravilhas da solidão no deserto estranho do próprio espaço íntimo a ser percorrido.

Uma boa noite, António.

Paulo Feitais disse...

É, António, a loucura do poeta. A mesma que dá vida a este seu texto escrito por um Imortal que nos visita e nos sonha desde o mais fundo!

Isabel Santiago disse...

Este é um texto poético puro. Escrito na loucura pura, na benevolência pura, no êxtase da beleza e das mãos insondáveis que nos largam em lugares "sem porquê" nem "para quê". Este texto de funda beleza, elevada inspiração, é tão intenso como o vento do deserto. Este texto é uma catedral onde voltarei vezes sem conta. Junto as duas mãos e agradeço a bênção da sua composição, da sua exposição ao que mora perto, ao lado, do sublime. E as lágrimas da leitora ganham brilhos inesperados e são sílabas profundas de agradecimento.