O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 27 de maio de 2008

A busca de Deus e a busca do Eu

Quem é Deus? Religiões, filosofias, ciências... procura-se saber o que é a realidade última, não só o que deu origem à realidade como a conhecemos, mas a verdadeira realidade, por oposição à contingente, portanto a necessária, incondicionada, que de nada depende, supostamente mais real. No nosso caminho da ignorância para o conhecimento, Deus é esse ponto de partida, fim da busca, eventualmente infindável. É, portanto, a realidade última, primeira, a explicação que a si mesma se explica, referente de um pensamento que a evoque correctamente. Mas... quem é Deus? O que é Deus? Quais as suas propriedades? O que o caracteriza? Há quem afirme que Deus é isento de propriedades, o que me parece um contra-senso, pois que se existe algo o caracteriza; mas, quem assim defende, afirma também que Deus não existe no mesmo sentido em que nós existimos, que não é um objecto como os restantes, que não é simplesmente o apogeu da hierarquia dos seres, mas algo diferente, cuja essência permanece coberta, reconhecível apenas através das suas dinâmicas, actos, consequências, efeitos - será necessário que, na nossa análise da realidade, exista algo que nos escapa? Como podemos saber isso? A resposta é que não sabemos, pois que para que o soubéssemos, teríamos de conhecer toda a realidade - será possível virmos a conhecer toda a realidade? Os seus fundamentos? A sua justificação, explicação que a si mesma se explica, ser que a si mesmo se explica? Nessa possibilidade, o ser que a si mesmo se explica seria realmente uno, simples, na medida em que, se o não fosse, seria explicado por outros factores, que seriam Deus e não aqueloutro. Desconhecemos Deus; mas, na nossa busca, como quer que seja feita, necessariamente através da mente, pois que é o nosso meio de contacto com a realidade, sabemos que temos de encontrar aquilo que é auto-suficiente, independente de tudo o mais, primeiro na cronologia mental da ordem da existência, causa-efeito, que cada um de nós tem dentro de si. Penso que todos estamos de acordo em que existe a realidade incriada, até porque é implicada pelo seu contrário, que implica o (tempo) infinito. Outra questão é: como é possível que algo que é simples, uno, eterno, imutável, tenha, em dado momento, começado a criar, que tenha mudado? É incomportável. Por isso, ou não cria de todo, o que é em tudo estranho, ou está sempre a criar, o que em parte lhe retira o fascínio afectivo que sentimos pela sua transcendência, paz, alheamento do mundo, retirando-nos também o sonho de um dia virmos a viver essa espécie de paz quase inconsciente, o idílio... retorno a nós mesmos, conhecermo-nos: talvez por isso o Hinduísmo tenha construído/identificado o par Brahman-Atman como a realidade última, Cristo seja filho do Pai, Buda a natureza última das coisas. A busca de Deus é a busca da realidade última acerca da Natureza que nos envolve, a nossa própria busca interior (quem somos? Quem sou eu? O que sou eu? O que está no fundo de mim, isso que sou eu profundamente, inalienável, inabalável, que me constitui sempre?), a busca pela identificação Humano-Cosmos (desumanizando o Humano ou humanizando o Cosmos... as pontes) embora, muito provavel e egoisticamente, seja mais relevantemente, não por qualquer condicionamento exterior, mas pelo mais intenso desejo escondido, a nossa própria busca interior, que não é uma brincadeira em que procuramos as nossas características, assins e assados, mas o acto místico fundador no qual, supostamente alheados de nós, buscamos integrar-nos connosco mesmos - queremos conhecer-nos. Afinal, amamo-nos mais a nós mesmos do que a um pretenso deus desconhecido que uma qualquer tradição estranha nos queira impingir. Não há espelhos onde nos possamos ver, eternos avatares de nós mesmos. Ir além, ser além.

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