O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quarta-feira, 26 de março de 2008

Todos vivemos contínuas experiências místicas, porém viradas do avesso: daí a crença absoluta na realidade.

10 comentários:

Anónimo disse...

Deus deu o nome à rosa
E disse: - Espinho.
Linhas com que traçou
A cruz de Cristo.

Nalguns momentos
de pura lucidez
Vejo Cristo na cruz
Sorrir da evidência da morte.

Paulo Feitais disse...

O meu problema é o seguinte: podemos estar a viver uma experiência mística "verdadeira" e, contudo, julgarmos que a mesma está virada do avesso? Se procuramos, então, o "avesso" dessa experiência, ficamos "fora" dela. E se, então, dissermos que a realidade é uma ilusão... Ficamos presos "fora" da gaiola. Por assim dizer...
(É claro que não me esqueço de que falas duma "crença absoluta na realidade", mas a absoluta descrença nela é impossível, e talvez esteja aí um nódulo difícil de "cortar"). ;)

Ana Moreira disse...

Tu sabes: As experiências místicas não se procuram, nem se julgam. Acontecem! São relances de algo mais vasto...rasgos de totalidade, naturalidade, realidade absoluta - é complicado escolher termos: tantas palavras para dizer o mesmo e cada EU a sentir tudo diferente-. Tais experiências não têm que ser viradas e não podem ser manipuladas. A subjectividade íntima, a fragilidade dessa experiência não tem que ser reconhecida exteriormente, nem pede provas.
A realidade externa, a quotidiana, é subtilmente múltipla e ligeiramente diferente de individuo para individuo, isto se falarmos de seres semelhantes, porque a realidade de um vírus deve ser muito diferente da realidade humana, digo eu...mas quem sou eu?
Quando o P.Borges se refere a vivermos contínuas experiências místicas, porém viradas do avesso está a referir-se à vivência quotidiana, aquela que nos apaixona quotidianamente com a sua intensa dualidade electrizante e polar.

Agora, diz qualquer coisa Homem, desabafa, chama-me nomes...
Oh! da guarda, onde está o Paulo Borges?

Anónimo disse...

Algures no ventre da Serpente, essa devoradora ...

Anónimo disse...

Se calhar, Graciosa(mente) homenageando Agostinho da Silva ...

Anónimo disse...

Se por vivermos experiências místicas do avesso criamos a ilusão de uma crença absoluta na realidade, por vivermos experiências verdadeiramente místicas criamos a ilusão da crença absoluta na não realidade?

??

João Beato disse...

Que bela pergunta! Acho que é isso mesmo... Segundo o que me parece, a descrença absoluta na realidade é na maioria das vezes mais uma crença do que propriamente um verdadeiro conhecimento (gnose). Concordo com a afirmação do Paulo Feitais: se dissermos simplesmente que a realidade é uma ilusão ficamos aprisionados "do lado fora" da gaiola. É uma crença muito aliviadora e libertadora, sem dúvida, mas não deixa de ser uma crença. Quem lê e compreende intelectualmente, por exemplo, o nono capítulo do "Caminho do Bodhisattva" de Shantideva, alcança um grande alívio e libertação, sem dúvida. Mas há uma grande diferença entre uma compreensão conceptual de que a realidade é ilusória e o conhecimento gnósico dessa mesma questão. Se todos vivemos experiências místicas virados do avesso que havemos de fazer? Alguém sabe virá-las para o lado certo? Se sabe, que nos ensine. O que sei é que enquanto houver um sujeito que "sente" e que pode dizer "eu sinto" e "eu experimento", a experiência é subjectiva, e por mais que eu tenha compreendido os argumentos que me convenceram de que o "eu" e a realidade não existem, eu continuo a experimentar uma forma de subjectividade. A insubstancialidade da realidade começa por ser uma crença; à medida que se vai aprofundando o processo de des-subjectivização, a crença vai-se tornando aos poucos em gnose, o que exige um trabalho de investigação sobre a natureza da mente e da percepção dos fenómenos, inclusive o fenómeno do sentimento. Se depois da compreensão da vacuidade determinados sentimentos deixaram de me fazer sofrer e até acabaram por desaparecer, então deu-se gnose, diluiu-se parte da subjectividade, desligou-se, nalgum lado, a ligação corpo-mente, o que implica questões neuro-químicas, psíquicas e psicológicas (e não há psicologia sem símbolos, e não há símbolos sem hermetismo). Mas se eu espetar uma agulha no braço e sentir dor, então essa ligação, nesse ponto, está intacta, há ali um sujeito, portanto estou ao nível da crença quanto à insubstancialidade do real, se fosse gnose não sentiria qualquer dor.
A ligação corpo-mente é onde reside a subjectividade, é a partir da nossa relação com o corpo que criamos a nossa noção mental de "eu" ou "sujeito". A relação corpo-mente (sentimento e sensibilidade) é simbólica, parece-me difícil que se consiga explicar como se dilui o sujeito psíquico sem o recurso aos símbolos, e aí entramos na estética, na criação: criação de vida, pela sexualidade, criação de prazer e beleza pelo erotismo, mas também pela arte. Se concebermos a realidade como um poema, como uma obra de arte, tudo é simbólico, a História é simbólica, mesmo as ciências são simbólicas, ou seja, a realidade é mito, tudo é Mito (o que acaba por ser uma forma de "nadificação"). Fica por resolver, contudo, a questão ética: se tudo é mito, por que temos que passar por esta existência ilusória, o que nos motiva para a acção, por que motivo a nossa missão é criarmos condições neste planeta (inexistente?) para a instalação de um Quinto Império? Eu não acho que esta existência terrestre seja a única experiência existencial; tal como Giordano Bruno, acho que há muitos outros mundos existenciais, infinitas dimensões existenciais. A vacuidade é só mais uma peça do puzzle, não acho que tudo se fique por aí.

Anónimo disse...

Excelente resposta, João Beato

Quando colocamos a pergunta, de algum modo ela já está respondida, nos próprios termos que a formulam, pois já passou por uma compreensão que é subjectiva, na medida em que pertence à ligação corpo-mente (quer essa compreensão venha do conhecimento dos símbolos quer venha da região da poética ou de outra forma de estética, também elas carregadas de símbolos… Parece que eles são mesmo necessários no processo) … Contudo, o mito que assim se instaura, «o Nada que é Tudo» pessoano, arquétipo de algo que existe e que ultrapassa, de alguma forma, a subjectividade e a crença no real e no irreal.Também não é suficiente... O que fazer com esse Mito? A vacuidade não pode ser um fim em si, nem apenas um alívio por pensar ou ter mesmo saído da roda do sofrimento, da dor, etc. Talvez seja tão só uma chamada de atenção para a relativização do corpo e da mente, num universo mais vasto de experiências existenciais… «infinitas dimensões existenciais», senão… seria a ataraxia, a indiferença… O que fazer com a vacuidade? seria a nova pergunta…

Um abraço

Anónimo disse...

Será que de novo «os rios voltam a ser rios e as montanhas montanhas...»
Desta vez libertas de nós?

Ana Moreira disse...

Somos desde sempre a totalidade a percepcionar-se parcialmente.