O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 23 de março de 2008

Quase todos se acomodam

Quase todos se acomodam: os que buscam despertar tornam-se religiosos, os visionários devêm artistas, os poetas escritores, os revolucionários políticos, eu crítico e até tu leitor…

48 comentários:

Ana Margarida Esteves disse...

Todos os papeis que assumimos, mais cedo ou maid tarde, se tornam camisas de força que podem acabar por nos asfixiar. Há que ter a lucidez e a coragem de os colocar sempre em causa.

Lord of Erewhon disse...

Por fim, limitamo-nos a ser humanos - olhamos para a casca de carne ao espelho, os que há e os do Outro, e até nos sentimos confortáveis...

Abraço.

«Os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens.»

J. L. Borges

fas disse...

Lembrança vaga dos passos no deserto

Anónimo disse...

Até eu torno ao que não sou, para me lembrar de como era...

afhahqh disse...

Há sempre uma pequena aldeia gaulesa que resiste, algures...

luizaDunas disse...

Os que buscam despertar a si próprios ou os outros?
Os visionários de qual realidade? Os poetas não escrevem. Os revolucionários de que ponto da evolução?
Críticos de quê?
Quase todos os que se acomodam não se incomodam.

Paulo Borges disse...

O que quero dizer é que os poetas, escrevendo ou não, se degradam em escritores. E eu em crítico...
Despertar é sem eu nem outros, para os visionários não há realidade e na revolução finda a evolução (que nunca há).

Anónimo disse...

De facto, tudo o que é deixado entregue a si mesmo, sem ser cuidado, acaba por se degradar. É uma "lei" física que vale para a natureza humana, para as coisas com duração e para os desejos limitados do ser humano.
A sociedade organizada em instiutições formais e não formais, acaba por devorar-nos a todos...
Existir ou não existir nem sempre é uma opção...

Anónimo disse...

A pior das acomodações é ser...

Anónimo disse...

Ser. Não sei se "a pior das acomodações"... Talvez das constatações mais inquietantes...

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." F.Pessoa

Anónimo disse...

Sim. Como posso deixar de "Ser" ? Estou aqui ... vou sendo alguma coisa mesmo que não queira e disso tenha consciência ... sou um produto de mim, bem sei. Mas ...

Anónimo disse...

"Mas..."

Oremos.

"Nossa Senhora
das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos..."

"Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!" FPessoa

Anónimo disse...

Pois, continuemos orando...

"Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos,
Beija-nos silenciosamente na fronte, que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida."

A. Campos

Anónimo disse...

"O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma."

FPessoa (agora, ele mesmo)

Anónimo disse...

A ti "Oriana" ...

"Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri ?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou ?"

F. Pessoa

Anónimo disse...

:)
"Com duas mãos - o Acto e o Destino-
Desvendamos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o facho trémulo e divino
E a outra afasta o véu."

F. Pessoa

Anónimo disse...

"Fosse a hora que haver ou a que havia
A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
Foi alma a Ciência e corpo a ousadia
Da mão que desvendou."

F. Pessoa

Anónimo disse...

"Todo o começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta espada?"

Ergueste-a e fez-se."

F. Pessoa

Anónimo disse...

Que digo ? Que sou ? Das duas uma: quem uma duas ficou ?

Anónimo disse...

Bom Dia Oriana !
Ainda estás por aqui ?


"Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força !

Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A benção como espada,
A espada como benção !"

F. Pessoa

Anónimo disse...

Bom dia! Ainda estou...

Ah! A estética da coerência... Ser só uma...

"Eu não sei como isso se faz."

"Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim..."

"Ainda assim, sou alguém."

"Eu, eu mesmo... (...)
Eu..."

FPessoa

Anónimo disse...

Ah ! Ainda estás ...

"Quantas horas tenho passado em convívio secreto com a idéia de si! Temo-nos amado tanto, dentro dos meus sonhos! ..." B.Soares

"Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato." A.Campos

"Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio." A.Caeiro

"Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade de mim."

F. Pessoa

Anónimo disse...

Não há maneira de fugir ao ser e à palavra que o diz. Nenhuma religião ou ópio desvendará o milagre de ser. Pessoa tentou...esvaziou-se, enchendo-se de muitos, para ver se a dor parava, para ver se pensar parava...Andavam todos a bailar na sua cabeça(na nossa cabeça)... e nunca deixou de ser... só a pequenos intervalos, mas esses também ardiam na febre e no absinto de tudo ser...Sofreu menos, sofreu mais?...(Nalguns momentos de pura lucidez, vejo cristo na cruz, sorrir da evidência da morte)...Porque se acomodou Fernando Pessoa a ser? Não se incomodando?Incomodando-se? Conformando-se e desconformando-se? construindo-se e desconstruindo-se? Não há receitas... e ainda bem. Cada um é um a sós, mesmo conversando com os seus fantasmas, ou deixando-os morrer de inanição.«O maestro sacode a batuta». É um teatro, um baile de máscaras que dá para todos os atlânticos da alma... É uma cena sonhada por um outro sonhador a Ser... Não tem importância porque tudo deixa, breve, de o ser...Mas o ser que não vemos nem sabeos o que é, não pára. Somos muitos, somos milhões a ser e a imaginarcomo será verdadeiramente ser, ou de que ser falamos, quando falamos...ou mesmo quando estamos calados. - Fausto, não há maneira de fugir ao conhecimento, o amor, à vida, ao prazer, há dor. Álvaro de Campos sabia-o e mesmo do alto da sua arrogância de ser incómodo, como se acomodou rapidamente à doce vida de aposentado... E continuou a haver o ser na língua que o diz, no modo como o diz.
Saber demais, ser demais/ É o mesmo que estar muito tempo quieto/ no mesmo lugar/ e não ter vontade de sair de lá/ Nem sequer na ideia/Como uma mão dormente... E mesmo asssim, a ser plenamente, miseravelmente, em grandeza de alma, em ridículo de si. Assim somos nós todos os que temos febre e não bebemos absinto, porque já não o há de qualidade... daquele que entra na garganta como uma bola de fogo e nos torna religiosos, visionários, artistas, poetas, escritores, políticos, críticos, leitores...budistas de todas as vias; fantasmas de todas as existências e inexistências... todos todos... como uma imensa bola de fogo a ser... a pensar ser a cada gesto,a degradação e o fim de cada gesto...parece que o ser não se desmancha nem se desmonta e é, mesmo como Caeiro vê a coisa no retrato...fenómeno desligado de si mas que o pastor do ser guarda em pensamento...Não há remédio para o ser... ele não deixa prisionar-se, nem definir-se, nem limitar-se...
E quando fazemos um gesto... esvoçamos uma ideia... escrevemos uma palavra, por mais fraca de luz, ou iluminada por dentro que seja...unca deixamos de ser repetição do mesmo. Viajantes numa roda que gira sempre a ser e a não ser.Ela mesma acomodada a ser roda, porque esse é o seu modo de ser.Não há nada a fazer. Há ser.

«Oriana» e «inquieta» a serem duas
com as máscaras de Pessoa... a ser muitos a ser ao mesmo tempo.Sejam!

Anónimo disse...

Somos duas, caro Obscuro Pensador !

Espero desassossegadamente por Oriana ...

"E lânguida e triste a música rompe ...

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ... "

Anónimo disse...

E o que dizem as vossas palavras, para além dos diálogos pessoanos?
Qual é a vossa voz?

Anónimo disse...

Não tenho voz Caro Obscuro !
Acomodada só empresto a voz...

" Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), p'ra além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce

Parou... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce..."

F. Pessoa

Anónimo disse...

Calha bem, porque eu não tenho boca, só voz...:)

Anónimo disse...

Obscuro pareces não passar de um acomodado.....

É fácil ter voz sem boca, sem rosto....

Anónimo disse...

"Nunca tive alguém a quem pudesse chamar Mestre. Não morreu por mim nenhum Cristo. Nenhum Buda me indicou o caminho. No alto dos meus sonhos nenhum Apolo ou Atena me apareceram para que me iluminassem a alma." Pessoa

Que interessa de que voz venho? Escolhi Pessoa por cantar "a cantiga de Infinito numa capoeira".
Indiferente? Só por fora.

Não passamos de esboços, de rabiscos aleatórios que não são mais do que "rabo para aquém do lagarto remexidamente" a tentar febrilmente redesenhar a existência dentro da ilusão de monólogos a vários por entre espelhos penhorados e palavras emprestadas...

Eu que nem sou de Filosofia, decidi parar nesta "terra de ninguém" e espreitar-vos, espreitar-me... Levo acrescentado o meu álbum de viagens com mais umas quantas fotografias de fantasmas a eternizar a legenda:
"A vida é a busca do impossível através do inútil."

Anónimo disse...

Essas palavras da boca de um anónimo...?
Onde está essa boca?... onde está esse rosto?
A tua voz, ouvi-a...
Mas para dizer o quê, exactamente?
«É fácil ter voz...» Porque não experimentas?

Ana Margarida Esteves disse...

E o amor, meus amigos, e o amor? O entregar-se, o esquecer-se de si mesmo no outro?

Anónimo disse...

Oriana,
E escolheste muito bem!:)

Anónimo disse...

Olá, Ana Margarida,

«E o amor...»
Tem boca e voz, alma e corpo, mas só alguns o sentem e o sabem dar e receber...

Anónimo disse...

Para ti, Obscuro:)

"Mas fala tu, espectro vagabundo,
Ó sombra estranha!
Que a tua voz abale este profundo
Silêncio, que me cerca e me acompanha!
Eleva a tua voz. Que possa ouvir-se
Em mar e serra.
Que, de eco em eco, vá repercutir-se
Pela formosa imperfeição da Terra..."

Teixeira de Pascoaes

Anónimo disse...

Retribuo:)

Olho os astros e o meu olhar de terra
Faz sementeira de asas no polimento escuro.
Que palavra de voo ágil e leveza eterna
Dará no chão do céu reflexos de poema?




A quem importa
O estremecimento que sentimos
Diante da luz viva
Que habita no verde de uma folha de árvore?
Para o pensamento, não se despem os ramos.
A árvore é a ciência que nos traz vivos
Os ramos do Inverno que nos chega à lareira,
À hora do cansaço animal.
Estamos prontos para o sono.
Para a noite, guardamos o tronco maior,
Para contar a história que alguém sonhou por nós.
«Era uma vez uma princesa que vivia
Na casca de uma árvore branca e fria…»
E a noite adormeceu, enfim, mesmo sem nós,
Cansada de ser vento, a árvore verde,
Chiou a noite inteira a dureza dos nós.

Anónimo disse...

Deixo-vos porque ...

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

"Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?"

"Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga de Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado."

"Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara."

Álvaro de Campos

Anónimo disse...

Inquieta, não te retires, ainda...
Ouve a pontuação:

Pontilemas

Reticências


Não nomeies nem prendas o pensamento
Apenas ao rumor de uma frase…
Deixa que te leve o vento de uma ideia
Até ao coração oculto na palavra,
Até essa ilha dobrada sobre uma palmeira
Sob um céu de chumbo amarelado;
Metáfora suspensa no seu voo,
Como uma águia de asas abertas
Vigia o estrume da dor
Que a terra guarda no seu peito nu.

Não te canses nem fales alto,
Guarda a mente livre
Para quando tiveres de enfrentar
A suspensão do fôlego
Que o silêncio acaricia na sua morna boca.


Ponto Final


Não existe senão na circunstância
De uma mudez sábia.
Ponto de silêncio
Provocando o destino
Temporal da fala,
O limite dos dois rios
Por onde circula a alma humana.
Branco ou negro sobre o pano do tempo
O ponto é a espiral onde todos giramos.
Não existe final onde o ponto se abrigue
Só passagens,
Sinais e corredores de luz branca.

Onde o ponto crepita
É que as palavras ardem.


Vírgula


Respira sobre a página
A pausa do poema,
A superfície lisa da palavra,
Redonda, na sua ontologia universal
Ou antes maleável como a água cantante
Sobre a face azulada dos mares
Respiração profunda e breve,
O retomar da voz.
Como o tempo flui
Inexorável e eterno,
Como o ritmo escondido
De um poderoso sopro.

...

Anónimo disse...

"Sinto-me constantemente numa véspera de despertar, sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de conclusões. De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a qualquer parte. Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados.

Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o objecto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém. Há, algures, um subterfúgio transcendente, uma divindade fluida e só ouvida."

"Estou liberto e perdido."
Bernardo Soares

Anónimo disse...

...
Quando, entre as árvores,
O dia empurra o baloiço do sol
A minha tristeza põe-se, naturalmente,
A ocidente.
Quando ainda são verdes os nós e as nervuras
Da árvore do dia.

A luz amarela do Verão
Cobre de pó de oiro
As paredes brancas da casa.
À volta do limoeiro
Os insectos enchem o ar
Um ou outro pássaro
Já roça as suas asas na brisa fresca
Da noite nascente.

A minha vida devia valer só isto:
Um balançar entre um dia e outro dia
No baloiço das árvores
Que giram à roda do Sol.


Noite


Fecho as portas à noite
E dou ao vento a distância.
A casa habita a intimidade de um gesto.
Um passo à roda do jardim
E um gesto de olhar
Vê se as plantas têm no verde
A água que o sol parece pedir.


Fecho com cuidado maternal o grito
Dentro das persianas;
Ato à roda dos cabelos da noite
Uma grinalda de estrelas;
Uma franja de riso no negro do céu:
Fecho, com cuidado, o tempo,
Dou um nó ao dia, e atiro-o,
Como uma bola em fogo pela encosta abaixo.

Peço à noite, a dos gestos sossegados,
A serva humilde,
Que leve nos cabelos a poeira de luz
Que ilumina a janela do outro lado.
Quero o silêncio até onde se ouve
O último som de um pássaro mais afoito.

Fecho as janelas e a luz continua sol dentro da casa.
Faço baixar a alma das coisas
Até ao coração da prece.

Ó noite, mágica princesa, fada do oriente!
Ó melodia adormecida nos meus ouvidos!
Ó mão que afaga, ó colo que se oferece,
Ó noite equilibrista do mundo
Na luz quente de um círculo de lona
Uma campânula, uma bolha de água morna
A querer fugir pela janela.

Noite, amante, irmã, riso dos meus lábios!
Curva do meu sorriso, alma do meu mundo!
Enlaça-me, como uma brisa leve nos cabelos
Uma brisa morna que traz o sal para ao pé do rio
O rio que a noite interrompe no seu sábio deter.
Fecha, ó noite, o meu coração às coisas que se agitam
Senhora mãe da paz, abre os teus braços
Ao meu sonho acordado.

Devolve-me ao meu país do mar
E deixa-me dormir no coração das ondas
Que embalam o meu quarto
E o levam para o bojo dos navios;
E o empurram para a pedra lisa de uma ilha
Tão distante da geografia dos homens
Que a fala que se escuta tem o alfabeto
Mágico das pedras falantes;
Dos risos que as deusas oferecem aos anjos.

Depois, abre as portas ao mar atormentado
E deixa que a chuva caia dos meus olhos
Até ser de novo dia
Até que a água toda seque
E eu que já lá nem estou
Sinta isto por um vinco de lua no lençol.

Anónimo disse...

Caro Obscuro,

"...
Em aberto, em suspenso
Fica tudo o que digo.

E também o que faço é reticente...

.
Depois de mim maiúscula
Ou espaço em branco
Contra o qual defendo os textos

,
Quando estou mal disposta
(E estou-o muitas vezes...)
Mudo o sentido às frases,
Complico tudo...

!
Não abuses de mim !

?
Serás capaz de responder a tudo o que pergunto ?"

Alexandre O'Neill

Pronto.
Quantas falam contigo se são reticências ?

Anónimo disse...

Oriana,

"Criei-me eco e abismo, pensando. Multipliquei-me aprofundando-me. O mais pequeno episódio - uma alteração saindo da luz, a queda enrolada de uma folha seca, a pétala que se despega amarelecida, a voz do outro lado do muro ou os passos de quem a diz juntos aos de quem a deve escutar, o portão entreaberto da quinta velha, o pátio abrindo com um arco das casas aglomeradas ao luar - todas estas coisas, que me não pertencem, prendem-me a meditação sensível com laços de ressonância e de saudade. Em cada uma dessas sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada impressão indefinida.
Vivo de impressões que me não pertencem, perdulário de renúncias, outro no modo como sou eu."

Bernardo Soares

Anónimo disse...

Adorei o «pronto»:))
Belos diálogos

P(r)onto de Interrogação



Interrogamos desde que existimos
E é sempre a mesma a pergunta:
“O que é existir?”
E é sempre o mesmo eco/resposta:
“O que é existir?
“O que é existir!?...”
Existimos e perguntamos.
Ao mar, perguntamos porque respira fundo a maré que enche
E não se apaga;
À noite, perguntamos porque cobre as coisas de irrealidade
E as afaga;
Ao Sol, não perguntamos nada
Não é preciso.

Anónimo disse...

"Lá fora estava já completamente escuro. (...) Reinava um grande silêncio. Bastian contemplou fixamente as chamas das velas.
Mas, de repente, estremeceu, porque o soalho tinha rangido.
Pareceu-lhe que ouvia alguém a respirar. Susteve o fôlego e pôs-se à escuta. Para além do pequeno círculo de luz difundido pelas velas, o enorme sótão estava agora envolto em trevas.
Não se ouviam passos leves na escada? E o fecho da porta do sótão não se movera lentamente?
O soalho rangeu novamente."

"O relógio da torre bateu as 10 horas."

Michael Ende

Anónimo disse...

Bom Dia Oriana !
Não li o livro. Talvez possa falar dele mais tarde se, hoje, o conseguir roubar tal como Bastian ... Essa ideia de roubar livros é fascinante ... tem um não sei quê de mistério ... risos ...
Ah ! Queres saber se roubava livros ? !
Não. Não podia. Não tinha onde os esconder ... raramente me "acomodava" num casaco ... Agora, com estas modernices electrónicas o Bastian estava arrumado ... risos ... perde-se todo o mistério toda a "Fantasia".

Obrigada pela dica, Oriana.

Anónimo disse...

Bom Dia Obscuro !

Continua a escrever ... gosto de te ler. Sempre.

"Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! vou existir.
E-xis-tir...
E-xis-tir...
Dêem-me de beber, que não tenho sede!"

Álvaro de Campos

Anónimo disse...

Oriana,

Sejamos a Imperatriz Criança ! Sempre !

Vi o filme há já alguns anos ... mas hei-de ler o livro, um dia ... se o conseguir roubar ... risos ...

Anónimo disse...

Risos? Contra quem?

"Depus a máscara e vi-me ao espelho.
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha."

A. de Campos

Anónimo disse...

Risos por roubar a voz que habita os livros ... A voz que o Ricardo escuta, a voz dos deuses

"Tão cedo passa tudo quanto passa !
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?"

Ricardo Reis