O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O que é a mente ?

"No íntimo da essência da mente desperta totalmente pura, / não há nenhum objecto a ver ou algo que constitua uma visão - / nem o mínimo sentido de algo a observar ou de alguém observando. / Não há consciência comum que medite ou algo sobre o qual se medite. / Devido à presença espontânea, sem qualquer dualidade de objectivo e conduta, / não há o mínimo sentido de qualquer fruição a alcançar"
-Longchenpa (1308 – 1363), The Precious Treasury of the Basic Space of Phenomena, Junction City, Padma Publishing, 2001, p.43.

14 comentários:

Bhixma disse...

É um texto muito belo, mas que, a meu ver, retrata a faceta inconsciente do que poderíamos chamar, na terminologia ocidental, incondicionado ou absoluto. Ora, como sublinhou Schelling, o absoluto não é nem consciente nem inconsciente, mas está integralmente nos dois, sem se reduzir a qualquer um, visto que ele é o ponto ou elo de indiferença entre o neutro e o pessoal.

Paulo Borges disse...

Saúdo a tua aparição na Serpente, caro Bhixma ! Quanto à tua observação, creio que a ausência de consciência dualista e intencional não implica a ausência de consciência. A meu ver, Longchenpa fala precisamente da mente desperta ("rigpa", em tibetano), que a tradição da Grande Perfeição (Dzogchen) experimenta como vacuidade irradiante, tanto mais sábia e sensível quanto mais livre da percepção de qualquer entidade real, subjectiva ou objectiva. Os textos tibetanos insistem na fecundidade consciente e compassiva do aspecto de vacuidade da mente não-dual, que articula assim o imanifestado e a manifestação. Talvez um pouco ao modo desse vínculo no absoluto schellinguiano do neutro e do pessoal, embora sem usar essas categorias.

Bhixma disse...

Posso estar a interpretar mal as tuas palavras, mas parece existir uma negação - quase uma condenação - da consciência intencional e dual. Se ela se assumir como expressão única do incondicionado - o que sucede tantas vezes na vida prática - compreendo a reserva. Mas a intuição de Schelling é que o incondicionado está todo ele tanto na mente não-dual, como na dual, como ainda na indiferença entre as duas. A sua teoria das potências é a explanação dste percurso filosófico.
p.s. é evidente que Longshenpa e Schelling não têm que pensar o mesmo... :-)

João Beato disse...

Imagino que aquilo que Longchenpa entende por "mente desperta" deva ser um estado de consciência realizado através da prática da meditação, ou seja, de algo que teve de ter o seu início numa observação directa da mente.
Pergunto-me como é possível alguém fazer o relato de uma "experiência" que, à partida, não teve nenhum experimentador. Se na mente desperta não há nem objecto observado nem observador, então a mente desperta não pode ser designada como uma "experiência"; mas se não pode ser designada como tal, se não há nenhuma testemunha nem nada a ser testemunhado, como é possível alguém falar de algo que não foi testemunhado e de que não houve testemunha? Para que alguém possa dizer que a mente desperta é "isto", esse alguém teria que ter observado/experimentado "isso"... Mas se a mente desperta é não haver ninguém a observar e nada a ser observado, como é possível alguém poder falar de algo (mente desperta) que nunca pode ser observado/experimentado por ninguém? Resumindo: como é possível fazer uma referência verbal a algo irreferenciável, quando esse algo irreferenciável é a própria irreferencialidade, pois ninguém pode referir-se a algo que nunca é/foi observado. Se a mente desperta é não haver observador nem objecto observado, então a mente desperta não poderia existir; se "alguém" fala dela, esse "alguém" conhece-"a". Como é isso possível?

Luar Azul disse...

daí aquela frase, o tao que pode ser dito não é o verdadeiro tao. e apesar disso nós "sabemos" do que estamos a falar, apesar de não ter "sabor". É-se.

Paulo Borges disse...

Caro João Beato, além da "mente desperta" transcender toda a experiência meditativa, que neste sentido é sempre uma ficção dualista, o problema é que estamos a falar de uma mente desperta com os critérios da mente dual e conceptual... É claro que a verbalização da experiência desperta, porque livre do conceito de "experiência desperta", de sujeito da mesma e de todo o conceito, não pode senão sugeri-la, traindo-a, para ser entendida pelos nossos intelectos limitados pelas noções de ser/não-ser, sujeito/objecto, etc. É claro que a "mente desperta" e quem dela fala não existem (nem não existem) ! Por isso são verdadeiros, como já dizia o nosso Antero...
Ao Bhixma digo parecer-me que nesse sentido Longchenpa e Schelling pensam convergentemente. Somente o que a mente convencional percepciona como consciência intencional e dual (ou seja, ela mesma), não o é para a mente desperta. Para esta tudo o que emerge é "não-dual". Nesse sentido, as "contínuas percepções dualistas emergem como um jogo / manifestação ("rolpa", em tibetano) devido à energia dinâmica da consciência (desperta)" (p.59). Dualidade e unidade são os ornamentos fictícios da não-dualidade ou da vacuidade do "espaço primordial" que não é isto nem aquilo, mas que, por nada ser, se manifesta como tudo (p.5). Neste contexto, todavia, evidência manifestativa não implica existência real. Ser(mos) evidente(s) é uma coisa, existir(mos) é outra. Mas com isto já estou de novo a responder ao João Beato...

João Beato disse...

Certamente, mas por mais desperta que a mente esteja, há uma parte da subjectividade que permanece intacta, caso contrário, pensando em termos radicais, o próprio corpo desapareceria desta realidade...

Paulo Borges disse...

Na tradição tibetana é o que é suposto poder acontecer na realização plena: a reabsorção dos elementos grosseiros do corpo no espaço primordial, sem deixar vestígio e sem passar pela morte... Possível desde que se reconheça a insubstancialidade do que se tem por "corpo" e se treine a sua dissolução e reaparição em vida, como mera emanação mágica que se utiliza para beneficiar os outros... Somos, nesta perspectiva, passes de prestidigitação, ficções e ilusões plásticas auto-animadas. Pascoaes e Pessoa viram isto muito bem. Há nas suas obras esta experiência da dissolução e recriação de si como a quinta-essência do acto poético. Falta-lhes haver integrado plenamente isso numa sabedoria e ética da libertação própria e universal.

Anónimo disse...

Deixemos esse trabalho aos "pregadores da verdade".

Luar Azul disse...

o corpo manifesta-se sem existir, ou seja é aspecto descolado de um todo irrepresentável. mente(:) o que representa.

Anónimo disse...

Como tu, que és o pior e mais hipócrita de todos, com a tua tão pensada inocência não pensante ! Antes todos os metafísicos e escolásticos de todas as mais bolorentas tradições ! Ao menos não enganam ninguém.

João Beato disse...

É verdade, lembrei-me logo dos casos de dissolução total, e até da própria ressurreição de Cristo. Sei que há alguma coisa a descobrir na relação corpo/mente, ilusão/desilusão, substância/insubstância, uma chave, uma passagem. Novos mundos, havemos de lá chegar...
A questão que coloquei acima tinha a ver com "nous" e "gnosis", estou convencido de que é necessário criar uma nova linguagem do conhecimento, senão vamos continuar eternamente enrolados num tipo de discurso que só atrapalha, ao ponto de chegarmos à conclusão de que só o silêncio é que vale a pena...

Anónimo disse...

Ó verdade, cada um é como cada qual, estamos todos no mesmo barco, estamos todos à procura de um sentido para esta existência absurda. Esforçamo-nos, tentamos, erramos, temos vontade de ajudar e de colaborar com o que temos e sabemos. Não haverá também hipocrisia e engano em ti e em todos nós? Presunção? Preconceito? Para quê um julgamento tão condenador? Achas que há alguém aqui que queira enganar intencionalmente? Nós nem existimos, somos só espelhos de espelhos...

Anónimo disse...

Tens razão, não só a da diplomacia !... Às vezes levo-me demasiado a sério... Esqueço a mentira de que sou feita... Obrigado por me recordares isso !