O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Sobre a espiritualidade de Agostinho da Silva

"Como vimos, a espiritualidade e o ecumenismo agostinianos, paracléticos, cumprem-se não na formulação de uma nova religião, sincrética, que a todas reúna e amalgame, nem mesmo enquanto religião do Espírito Santo, enquanto centro unificador de toda a vida espiritual e religiosa, mas antes numa experiência do Espírito, do divino ou do absoluto – isso que designa como “metanóia” ou “samadhi” - , acessível por muitas vias, religiosas ou não, sendo assim compatível com a existência dessa pluralidade diferenciada de caminhos que só será em definitivo transcendida quando todos os homens e seres comungarem a mesma experiência, inaugurando a trans-histórica era do Espírito Santo ou “os tempos de ser Deus” visionária e profeticamente anunciados. Todavia, para aqueles que desde já antecipam essa pneumofania, para aqueles que acedem a essa experiência plena ou pelo menos ao seu vislumbre, e a partir daí consideram a pluralidade diferenciada das religiões e vias, esta torna-se extremamente relativa ou mesmo evanescente, como para o centro vazio da roda que pudesse observar os múltiplos raios que dele partem e nele convergem (conhecida imagem taoísta, usada por Agostinho) ou para o viajante que, havendo chegado ao cume da montanha, pudesse contemplar, a toda a volta, as múltiplas veredas que lá igualmente conduzem. É nesse sentido que nos parece que Agostinho da Silva confessa que, apesar de usar predominantemente a linguagem da via religiosa que começa por praticar, e na medida em que aprofunda essa prática, já não se limita a ser um praticante dessa religião, no caso o catolicismo cristão, sem que o passe a ser de outra. Aliás, optando pelo “Nada que é Tudo” como melhor expressão do divino e do absoluto, mostra encontrar nele a possibilidade de conciliar todas as formas, nomes e imagens divinas com a sua total ausência, negação ou superação. Como diz, em dois aforismos significativamente sucessivos de um texto ainda inédito: “Não sou inglês por falar inglês. Não passo a ser católico se uso a linguagem católica”; “Aviso aos que não concebem que sob o Deus católico possa haver o nada dos budistas” .
Todavia, se a experiência de Deus, do Espírito ou do absoluto é uma transcendência de todas as vias, religiosas ou não, ela converte-se, ao mesmo tempo, e por isso mesmo, no sentimento da sua plena e total integração e cumprimento, sem qualquer contradição, como não há contradição em considerar os raios da roda inseparáveis do seu centro vazio ou o cume da montanha inseparável de todos e cada um dos caminhos que de lá partem e lá conduzem. Daí, ainda sem contradição, outra afirmação: “Claro que sou cristão; e outras coisas, por exemplo budista, o que é, para tantos, ser ateísta; ou, outro exemplo, pagão. O que, tudo junto, dá português, na sua plena forma brasileira”.
- Paulo Borges, Tempos de Ser Deus. A espiritualidade ecuménica de Agostinho da Silva, Lisboa, Âncora Editora, 2006, pp.189-192.

1 comentário:

Anónimo disse...

eu, não sabendo o que é ser portuguesa, sinto-me portuguesa. por que será?