O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Errático

Toda a arte é um clamor
Como tudo me impele ao brilho límpido
Do teu olho-armazém, matagal, labiríntico
Toda a arte entra
Por tudo quanto é:

poros
palavras
olhos
prosápia
lábios
rosas
pele
prosas
sal
sexo
músculo
fístula
no peito
na mente
efeito
transformação

Toda a arte é início
Toda a arte é re-ilusão da dor
Toda a arte é reinvenção do amor
A arte inteira, o feio no belo
O elo esfíngico das contradições
Revolução secular dos paradoxos
Toda a arte é macia como a pétala
E dura como ossos
Toda a arte é pele
Toda a arte é foco
Toda a arte é por
Toda a arte é contra
Toda a arte é cor
E no submundo molecular dos seus constituintes
Corre um rio de som

Toda a arte é grito
É rito, é mito, é nicho
Tudo se encena no palco dos aflitos
Tudo se páre como a filhos
Tudo se engole e vomita
E instila e instiga e incita
O mundo em questão
Emudece a questão
Amordaça a questão
Estremece a questão apopléctica
Arrazoares órfãos, profanos
Perdão,
Arrazoares tão tamanhos
Quanto o coração

A arte é um desmancho
A arte é um desmando
A arte é a Demanda
Toda a arte é um pedido
De tudo
Toda a arte é um infindo
Domingo
Caleidoscópio fugaz
Constelação sempiterna
(E o que é mágico, voraz
É que pode nascer)
Da ponta dos meus dedos
Dos meus pobres, torpes zelos
Frementes, suados numa caneta
Na língua quente
A lançar versos-sons
Na voz
Na tez
Da actriz em flagrante delírio
Na fuga
Ao vício
Do dia atrás do dia
Só por ser
Dia atrás do dia
Na fuga ao isco
Da existência casca
Da existência superfície
Da existência gasta
Toda a arte é impureza
Toda a arte é impoluta
Toda a arte sangra antes do tempo
E é, inclusivamente, tempo
E toda, mas toda
A sua ausência
Toda a arte degenera
Toda a arte desgasta
Toda a arte refaz
A arte inteira rodeia
A arte inteira meneia e geme
Toda a arte é filha da casta
Toda a arte é alto mar e
Leme

2 comentários:

Anónimo disse...

Poema interessante, na forma e no conteúdo. Mas esta absolutização da arte, corresponderá à verdade ? Pode a produção ou mesmo a criação ser um absoluto ?

Anónimo disse...

Acho que ao invés de absoluto pensaria em demanda, em avidez. É como ansiar ter asas: o voo maior é esse, a vontade de ter, ou ser, etc.
Penso na arte como uma coisa tão livre, que pode almejar à pletora, ou à vacuidade.
Grata pelo interesse:)